Este foi o belíssimo texto do Paulo Varela Gomes que saiu no Público do último domingo, com uma «chamada» parva sobre o «politicamente correcto».
A fama, a morte e as vidas de Emílio Salgari
Paulo Varela Gomes
Público, 22 de Abril de 2007
Quando o conhecido intelectual italiano Umberto Eco foi à Índia pela primeira vez, em 2005, com 73 anos de idade, respondeu assim à pergunta de Devika Sequeira, uma jornalista goesa do “Deccan Herald” surpreendida com essa descoberta tão tardia: “Houve pelo menos quatro gerações de italianos que cresceram a ler os livros de Emílio Salgari, o romancista do século XIX que também era muito popular no mundo de língua espanhola. Escreveu livros de aventuras passadas por toda a parte: na África, nas Caraíbas. Mas os mais importantes eram na Índia. Todos os italianos da minha geração e da geração do meu pai conhecem a Índia perfeitamente porque Salgari explicava tudo desde as árvores “banian”, até aos rios, às pessoas, aos costumes…”.
Eco estava a ser simpático para a jornalista porque Emílio Salgari não escreveu muitos livros sobre a Índia, mas é significativo que lhe tenha ocorrido invocá-lo.
De facto, Salgari foi muito provavelmente o escritor mais lido pelos rapazes europeus e latino-americanos (os rapazes, não as raparigas) entre o início do século XX e a década de 1970. Deve ser muito difícil encontrar um italiano, um espanhol, um francês, um português, um mexicano ou um argentino, com mais de 45 anos de idade, que não tenha lido os livros de Salgari no início da adolescência.
Em Portugal, esses livros foram publicados pelas edições Romano Torres logo no início do século. Na década de 1960, cada título da famosa “Colecção Salgari”, desde o nº 1, “A Montanha da Luz”, ao nº 152, “Sandokan e a Pantera de Sunderbunds”, custava 15 escudos. Eram livrinhos com umas 120 páginas em média, de formato 12 por 19, e belas capas com desenhos de origem italiana mostrando personagens de cores vivas e gestos violentos. Nunca comprei nenhum mas li-os todos. Os meus pais estavam ausentes em Peniche ou Caxias e o meu avô e tios, que cuidavam de mim, do meu irmão e das minhas irmãs, não tinham dinheiro para luxos. Mas também não era preciso. Na minha terra, Cascais, havia a biblioteca da casa Conde de Castro Guimarães. Para mim, foi durante dois ou três anos a biblioteca dos livros de Salgari. Ia lá na manhã do dia da semana em que não tinha aulas. Só podia requisitar três livros de cada vez. Os poucos leitores, deslizando silenciosamente entre as batidas solenes de um grande relógio dourado, iam buscar os livros às estantes de uma sala iluminada por uma única janela, rasgada ao fundo no paredão sobre a praia de Santa Marta. Ouvia-se o marulhar simpático do mar. Os livros tinham, sobre as capas originais, uma encadernação dura de cartolina vermelha ou verde. Encostava-me à estante folheando ora um, ora outro, hesitando na escolha, hesitando sobre para onde ir: se para junto de Sandokan, o “Tigre da Malásia”, e os seus corsários em luta contra os ingleses nos arquipélagos do sudeste asiático do século XIX; se para as Caraíbas com o “Corsário Negro”, a sua filha e os bandos de piratas que se batiam contra os espanhóis e os ingleses; se para o Brasil dos Tupis que disputavam a floresta aos colonos portugueses; se para a ilha de Madagáscar com os seus escravos revoltados; se para os “casbahs” de areia ardente dos salteadores do deserto do Saará.
Na contra-capa de “O Leão de Damasco”, nº 26 da Colecção Salgari (”Capitan Tempesta” no original italiano), um altivo castelo de tinta da china sobre azul erguia-se contra a lua e o mar. Ao olhar para o desenho e ao ler a palavra Damasco, ao pensar naquilo que aprendia nas aulas da história e geografia no Liceu de Oeiras e nos outros livros que por vezes requisitava por entre os Salgaris, quase sentia o ranger do cordame dos navios turcos do Mediterrâneo e o som da brisa nas palmeiras do deserto.
Entrei na adolescência e abandonei Emílio Salgari em favor de livros sem espadas e sem mosquetes, sem abordagens e selvas húmidas, sem animais de nomes estranhos e heróis de olhos em brasa, sem mulheres combativas e noites de tempestade. Depois reparei que todos tinham feito o mesmo: dos meus colegas e amigos, já ninguém lia Salgari, embora muitos - muitíssimos - mantivessem em casa, e num luminoso canto do coração, os livros da Romano Torres. Pior: reparámos que tão pouco os miúdos liam Salgari. No início da década de 1970, Emílio Salgari morreu. Em Portugal e por toda a parte.
Ressuscitou precisamente - e precariamente - em 1976 por via da televisão, do realizador italiano Sergio Sollima, do actor indiano Kabir Bedi. Foi uma série de dois episódios, de produção franco-italiana, intitulada “Sandokan”. Kebir Bedi encarnou o “Tigre da Malásia”. À série seguiram-se filmes, livros de banda desenhada, cromos, uma segunda vida para os velhos romances, agora na era da televisão. Parece que foi há trinta anos. E foi. Trinta anos que equivalem a trinta séculos de distância cultural. Com excepção dos cromos, que continuam a ser coleccionados e trocados, o “revival” Salgariano desvaneceu-se meia dúzia de anos depois, tão depressa como tinha surgido.
Os livros de Salgari não “pegaram” no nosso tempo, nem sequer com a série televisiva e o que se lhe seguiu, porque os seus livros assentam sobre os três pilares do ensino moderno burguês consolidado no século XIX: a história, a geografia, as ciências naturais, e hoje a divulgação e o ensino destas áreas do saber já não tem nada que ver com os livros, e menos ainda com a novela ou o romance que já não servem a informação ou a formação, mas o entretenimento. É um pouco por isso que as aventuras dos livros de aventuras se passam agora em sítio incerto ou lendário, em cronologia errática, em cenário minuciosamente artificial. A verificação não se faz noutros livros, faz-se nos outros produtos da indústria do entretenimento sem a constelação dos quais os livros não sobrevivem: os materiais feitos para a Internet e os brinquedos.
É provável que continue a haver muitos miúdos que lêem histórias, mas fazem-no não para saberem coisas ou para conhecerem esses “países estrangeiros” que são o passado, os outros… e os países estrangeiros. Fazem-no para se divertirem. Os livros de Salgari como, em geral, a novela e o romance, pertencem à cultura do livro que agoniza na arena pública há 50 anos perante o pasmo, a incompreensão, o desconforto e o ressentimento de educadores e intelectuais que não conseguem aceitar que tal cultura esteja a ser confinada rapidamente a uma elite, enquanto outras “coisas”, outras culturas, de perfil ainda pouco claro, tomam conta dos media, da esmagadora maioria das universidades, do espaço público.
É provável que qualquer miúdo saiba hoje o que é um “pecari” através de um canal como o National Geographic ou de uma simples pesquisa na Internet. Eu aprendi a páginas não-sei-das-quantas do “Corsário Negro” ou do “Corsário Vermelho” de Emílio Salgari. O “pecari” é um mamífero parecido com um pequeno javali que existe essencialmente na América do Sul e Central e cujos hábitos e aspecto Salgari descreveu entusiasticamente, a partir de enciclopédias e livros de viagens, como descrevia as plantas e a fauna “exóticas” de toda a parte.
Muitos anos depois de ter sepultado os seus livros no canto da memória onde também estão as batidas solenes do relógio dourado e a luz do sol da manhã sobre a praia de Santa Marta para lá da janela da biblioteca, lembrei-me muitas vezes de Salgari quando passei a ter a incrível sorte - que todos os dias agradeço aos deuses - de poder ir a alguns sítios onde nem toda a gente vai, não em turismo mas para ver o que se lá passa ou passou. Alguns desses sítios tinham já sido visitados por mim pela mão de Emílio Salgari e como ele os visitou: através da imaginação e da leitura. Foi assim ao olhar, no litoral do Brasil, para um manguezal, as árvores que mudam de raízes de modo a poderem deslocar-se, e que o escritor italiano descreveu como “árvores que andam”. Ou quando vi na Índia a minha primeira grande árvore “banian” cujo nome, como recordou Umberto Eco, aprendemos todos com Salgari. Senti-me o Visconde de La Hussiére do “Leão de Damasco” quando, na floresta de Ceilão, sacudi das pernas as sanguessugas que se preparavam para se alimentar de mim. A vida imitava a literatura. Era o que costumava fazer antigamente.
O cinema, essencialmente italiano, apoderou-se dos livros de Emílio Salgari desde o tempo do mudo no início do século XIX. Nas décadas de 1940 e 1950 fizeram-se filmes de argumento Salgariano no México e em produções italo-francesas. Nunca adiantou nem atrasou grande coisa. Emílio Salgari era para ler e foi através da leitura que chegou a toda a parte.
A toda não. Houve um canto do mundo dito ocidental no qual os romances Salgarianos só começaram a ser conhecidos no ano de 2003: trata-se de um canto importante, o mundo anglo-saxónico. É incrível mas é verdade. A primeira tradução para inglês de livros de Emílio Salgari ocorreu há quatro anos apenas! Tratou-se de “The Tigers of Mompracem” e “The Pirates of Malaysia” publicados por uma editora norte-americana.
Não sou muito de teorias da conspiração. Mas sou bastante de teorias do poder (às vezes é a mesma coisa). Penso que, durante todo o século XX, os editores ingleses fizeram deliberadamente de conta que Emílio Salgari não existia e contagiaram com esse silêncio os “primos” de além-Atlântico. A hostilidade britânica há-de dever-se a várias razões: talvez a snobeira de quem pensa ter melhores romances de aventuras, (com muita razão, acrescente-se); provavelmente o facto de o “mal” aparecer frequentemente identificado, nos livros de Emílio Salgari, com o império britânico. Os leitores Salgarianos não esquecerão nunca o arqui-inimigo de Sandokan, o infame “Rajah branco” da Malásia James Brooke, senhor de Sarawak, os opressores britânicos da Índia ou os governadores ingleses da Jamaica, personificação da maldade imperialista.
A última ressurreição de Emílio Salgari, que está a ocorrer nos nossos dias por “sites” da Internet e congressos académicos (e coincide - embora não por coincidência - com a sua penetração no mercado livreiro norte-americano), deriva do facto de o romancista ter sido “descoberto” como um autor anti-imperialista e anti-colonialista pela cultura pós-colonial dos círculos políticos e universitários da Europa e da América Latina.
Ou melhor: redescoberto. De facto, Emílio Salgari foi admirado entusiasticamente por personagens e autores como Che Guevara, Isabel Allende, Pablo Neruda e Gabriel Garcia Marquez. O Che, por exemplo, terá colhido dos romances do italiano alguma da inspiração para as viagens da sua juventude aventurosa. O anti-imperialismo da sua vida militante ter-se-á inspirado em personagens Salgarianos como o bengali Tremal Naik, o marata Kammamuri, o escravo negro Maiunga, que, entre muitos indianos, africanos, índios, imaginados por Salgari, demonstram uma singular ausência de racismo e um ponto de vista surpreendentemente cosmopolita. É muito grande o contraste entre os heróis de Salgari e os brancos de nariz levantado dos romances de outro grande contador de histórias de aventuras, o britânico Rider Haggard (1856-1925), autor de “As minas de Salomão” de 1885, livro que Eça de Queirós adaptou em 1891, um escritor muito estimado nos “clubs” de súbditos Sua Majestade britânica no século da rainha Vitória.
Em 2003, no início da recuperação pós-colonial de Emílio Salgari, podia ler-se no “site” da Biblioteca Nacional de Lisboa a propósito da Exposição “200 anos do romance de aventuras em Portugal”, que há um “fundo libertário na visão Salgariana de um mundo então eurocêntrico, racista e imperialista”.
Esqueceram-se do “sexista”. Uma pesquisa muito sumária na Internet com um ou dois motores de busca mais conhecidos chegará para demonstrar que os “women studies” ainda não descobriram Salgari. Mas não deve tardar porque abundam na galáxia Salgariana as estrelas femininas que não se limitaram a desempenhar o papel que o século XIX e o século XX burgueses lhes destinavam: o de vítimas ou de amantes. Há heroínas para vários gostos e há muitos romances centrados em personagens femininos de espada ou pistola na mão.
E também há portugueses, colocados por Salgari não do lado dos “europeus”, dos “racistas” e “imperialistas” mas, pelo contrário, do lado dos indianos, dos malaios, dos africanos, dos índios, dos piratas. Desde logo, é português o braço direito de Sandokan, o herói maior de Salgari: Yanez de Gomera (é verdade que é um nome castelhano mas não se pode ter tudo). Há portugueses no arquipélago malaio, nas florestas da Índia, no Mediterrâneo turco e veneziano, nas Caraíbas. São uma espécie de expatriados românticos. Poucos escritores não-portugueses terão tratado tão bem os portugueses.
Na época em que eu lia os livros de Emílio Salgari uns atrás dos outros como se a biblioteca do Conde de Castro Guimarães estivesse para desaparecer nos próximos dias, o meu avô mandava-me fechar o livro e apagar a luz relativamente cedo. À mesma hora, em milhares e milhares de casas, por toda a Europa, e, algumas horas mais tarde, por toda a América do Sul, milhares e milhares de rapazes e muitas raparigas fechavam os romances de Emílio Salgari e adormeciam nos mares do sul, nos refúgios dos piratas, nas areias do Saará, no vale do Ganges. Acho que adormecíamos todos e todas a sorrir: a Terra e a História eram nossas.