quinta-feira, dezembro 28, 2006

Réveillon no Lixo

castro.jpg

Capa da edição em inglês do livro de Ruy Castro, Carnaval no Fogo

Três anos atrás, eu estava no Rio. Na semana entre o Natal e o Ano Novo, as praias de Copacabana, Ipanema, Leblon são invadidas por números indescritíveis de pessoas. As praias cheiram mal. A água está tudo menos limpa. Na noite do réveillon, a população desce à praia em quantidades calculadas entre os dois e os três milhões de pessoas. Os hotéis e os navios aportados organizam um festival de fogo-de-artifício que dura uma meia-hora. Eu estava com os pés dentro da água do mar; uma garrafa vazia de espumante veio com as ondas e acertou-me na canela. Os cariocas (e os turistas) festejam a meia-noite na praia, levam a bebida, deitam as garrafas vazias no mar (junto com as flores a Iemanjá). No dia primeiro de Janeiro, saí à rua em Copacabana e não se conseguia andar, com o lixo, um bairro do tamanho de uma cidade média (ou mais) de Portugal inteiramente cheirando a urina. Tive de apanhar o autocarro e ir fazer tempo em Ipanema até à hora de apanhar o meu vôo. Não foi um bom réveillon.
Lembrei-me disto agora por – naturalmente – várias razões e porque entre os melhores livros estrangeiros publicados este ano em Portugal o Pedro Mexia colocou o do Ruy Castro sobre o Rio de Janeiro. Comprei-o lá, nesse mês de Dezembro de 2003, com sentimentos divididos (por não ter gostado de outros livros do Ruy Castro – mas os temas são sempre muito bons: a bossa-nova, Nelson Rodrigues, Carmen Miranda, Garrincha). A edição era bonitinha e ficou ali na estante até agora – até à lista de melhores de 2006 do DN da sexta-feira passada. Fui ler. O Ruy Castro nunca me decepciona. São duzentas e cinquenta páginas – pequeninas, é certo – das quais odiei praticamente cada linha. Não sorri uma única vez, não me fez pensar quase nada, não despertou curiosidade. Arrastei-o pesadamente ao longo de dois ou três dias – com um brevíssimo intervalo, quase no final: um conjunto de páginas sobre a história da bossa-nova (que o Castro conhece). O Castro não tem graça e faz piadas, o Castro não é historiador e abusa de um estilo que evoca o nosso José Hermano Saraiva: «Foi aqui…»

«Surpreendentemente, uma outra especialidade dos tupinambás, observada pelos visitantes, não conseguiu diminuir sua cotação em sociedade: o canibalismo. (…) No dia marcado para a execução, as aldeias vizinhas eram convocadas para a boca-livre e acorriam em hordas. Depois de muito canto e dança, os convidados sentavam-se no chão, formando um grande círculo. O prisioneiro era chamado ao centro do terreiro, tinha o seu corpo pintado e davam-lhe pedras e cacos de cerâmica para atirar em seus captores. Fazia também parte da regra que ele lhes dirigisse os piores xingamentos e jurasse que seus irmãos viriam vingá-lo. No auge do discurso, levava uma pancada com uma borduna que lhe esmigalhava o crânio, para deixar de ser besta, e morria en beauté, sob aplausos e pedidos de bis. (…) Pela quantidade de gente à mesa e a pouca fartura do prato, cada convidado conseguia comer, no máximo, um dedo do pé ou meia orelha.»
[Ruy Castro, 2003, Carnaval no Fogo – Crônica de uma cidade excitante demais, São Paulo: Companhia das Letras, pp.30-32.]

O Castro partilha do preconceito antiportuguês, que é das coisas mais palermas que se pode encontrar num brasileiro (e sabe Deus que eu sou o último dos patriotas e o primeiro dos brasilófilos). E o Castro tem uma moral e uma «agenda» para nos vender, segundo a qual o Rio realmente sofreu muito (criminalidade, atentados ao património, etc.), mas desde a década de noventa, desde realmente a véspera deste livro, tudo está finalmente a ir ao sítio graças ao esforço empenhado e desinteressado de cidadãos conscientes. Nas últimas páginas, o Castro quer até convencer-nos de que Copacabana, às oito da manhã do dia primeiro de Janeiro, é um espectáculo de limpeza, graças ao cuidado de três milhares de funcionários que apagam os vestígios da rambóia da noite.
Mas eu estive lá: Copacabana no dia primeiro de Janeiro e o livro do Ruy Castro têm um cheiro parecido.

quinta-feira, dezembro 21, 2006

Groucho



Andamos numa febre de you tube, embora seja duvidoso que haja por aí muito leitor de blogs com disponibilidade para ficar um, dois, quatro, seis ou oito minutos especado em frente do pequeníssimo ecrã a ver um video. De todas as formas. Everyone Says I Love You, que eu vi pela primeira vez no cinema em 2 de Maio de 1997 em Inglaterra, um dia glorioso de primavera, após a primeira vitória eleitoral de Blair, é um dos meus filmes preferidos de Woody Allen. Um musical - e geralmente subestimado. Mas o que eu desconhecia, até ter visto isto no You Tube, é que o próprio título remete para os Irmãos Marx. Eis então Groucho Marx em Horse Feathers cantando a canção-título. Woody Allen também canta no seu filme (até já o pus a tocar ali), talvez como réplica.

quinta-feira, dezembro 14, 2006

Freud&Ana



Depois de ver A Rainha, cheguei a casa e estava a dar Anything Else, de Woody Allen. Trata-se certamente de um Woody Allen dos mais fraquinhos (mas não mais que Hollywod Ending, Melinda and Melinda ou o novo Scoop). Ainda assim, tem muita graça porque é dos mais imersos em temática psicanalítica.

Duas carreiras políticas

rainha.jpg

Louvado. Louvado seja o Senhor, que há anos que não me lembro de um semestre de cinema como aquele que temos tido. Desta vez, fui ver A Rainha. Ao contrário do que o título sugere, não se trata de um pastel biográfico, mas de uma reconstituição dos eventos sucedidos na semana de 1997 em que a princesa Diana morreu. E a personagem de Tony Blair, encarnada por Michael Sheen (que apanha muito bem os trejeitos do primeiro-ministro britânico), talvez não seja muito menos central nem muito menos complexa do que a da própria rainha. A história é a reacção emocional massiva, descomunal, da população britânica à morte da princesa, e a forma como Blair e a família real lidaram com o acontecimento. A gestão política.

O início esboça uma dicotomia, entre a legitimidade democrática de Blair – «moderno», emanando do povo, em contacto com os seus sentimentos – e a legitimidade aristocrática da monarquia, um bando de neuróticos sem ligação com a realidade nem com os sentimentos populares. Subtilmente, o filme vai sendo outra coisa completamente diferente. No fim, a Rainha diz que nunca percebeu o que se passou naqueles dias; uma das virtudes do filme está em não dar ele mesmo uma explicação sobre a comoção popular. O filme nunca chega a responder à pergunta «por que é que aquilo aconteceu?», «por que é que as pessoas reagiram daquela forma tão descomunal?» Mostra as tensões, os conflitos, os dilemas da Rainha, mas não nos diz se o desfecho, se a sua derrota e submissão à linha proposta por Tony Blair, foi a coisa mais «decente» ou justa. Faz sentido transgredir todas as regras para responder a um sentimento popular irracional e talvez frívolo? Blair é um homem que compreende o povo, ou um explorador indecente do sentimentalismo? A grande virtude está em contar a derrota política da Rainha sem tornar claro se esse desfecho foi uma coisa positiva.

A outra coisa fascinante é que se trata de um filme sobre política. Blair e a Rainha têm fontes de legitimidade completamente distintas, mas os impulsos a que no fim têm de responder são bastante semelhantes. Apesar da sua legitimidade aristocrática, tradicional, a Rainha não pode ficar indiferente ao sentimento democrático e, para lhe corresponder, tem de quebrar princípios institucionalizados desde há séculos. Blair, pelo seu lado, não pode cavalgar o sentimento popular instantâneo e explorar a aversão pela Rainha: no auge da sua popularidade (alicerçada no contraste entre a sua imagem e a da monarquia), Blair procura sempre fazer a ponte com a família real, recuperar a situação da Rainha. Talvez compreenda que o seu próprio poder só se sustenta se puder ancorar-se numa legitimidade que não é democrática.

Blair emerge como uma personagem complexa e fascinante. O que é que o fez estar «certo» naquele momento, interpretar correctamente o sentimento das pessoas? De onde vem a sua extraordinária intuição política? E por que a perdeu mais tarde, completa e desgraçadamente, com o Iraque e com Bush? Há uma referência indirecta muito inteligente, no fim do filme, aos dissabores que o primeiro-ministro também viria a experimentar.

O filme é um «docudrama», um género cinematográfico que não está entre os mais apreciados pelos especialistas. O realizador apaga-se, para enfatizar o efeito «de realidade». Mas A Rainha é um grande filme político, pela interpretação, pela reconstituição histórica e pelas questões que suscita.

Pinochet no inferno

As notícias relativas ao funeral de Pinochet estão recheadas de detalhes interessantes. A trasladação do cadáver para a Academia Militar, onde foi velado, teve de ser feita de noite, de helicóptero, para evitar reacções adversas. O corpo foi cremado, por medo de que pudesse vir a ser profanado. A cremação, inicialmente prevista para um dos maiores cemitérios de Santiago do Chile, teve de ser realizada num outro lugar mais discreto, a 100 km da capital chilena. É certo que Pinochet nunca foi levado à justiça. Mas, desde 1998 - ano do mandato de captura do juiz Garzón - e até depois de morto, o antigo ditador não fez outra coisa senão inventar esquemas e fugir. É um caso (e talvez raro) de quem, por mais que se proteja, não fica a coberto dos crimes que praticou. Pelas suas decisões e subterfúgios, os seus familiares revelam que têm consciência disso. Suponho que o inferno seja isto.

Outros poderão conferir esta informação melhor do que eu. A acreditar na entrada do wikipédia, a palavra latina para inferno nada tem que ver com calor. Refere-se a «lugar coberto ou oculto». Precisamente.

quinta-feira, dezembro 07, 2006

O preservativo está a um preço caríssimo

Bem sei que não vale a pena perder demasiado tempo com ele: Vasco Pulido Valente é Vasco Pulido Valente, nas suas qualidades e nos seus defeitos, e quem o lê não vai propriamente à procura do rigor no facto e no argumento. O maior trunfo do colunista (para além dos literários) é a originalidade; e este cronista em particular é capaz de viajar a galáxias distantes à procura disso. (Não foi ele quem anunciou ao mundo que a derrota dos republicanos nas eleições de Novembro nada teria que ver com o Iraque?) O texto do último sábado, que proclama:

«Por muito que doa a uma certa demagogia, materialmente, a questão do aborto acabou por se tornar numa questão residual. O uso dos contraceptivos (que não custam caro) e, sobretudo, a “pílula do dia seguinte” (venda livre a menos de quatro euros) fizeram do aborto o resultado da ignorância, da irresponsabilidade ou da má sorte.»

O Doutor Pulido Valente não tem, possivelmente, a menor ideia do preço dos preservativos: à unidade são mais caros do que o jornal onde escreve, o que é sem dúvida uma tremenda injustiça. Além disso, em muitas desafortunadas circunstâncias as pessoas nem sempre gastam apenas um para cada, digamos, «utilização»: há muito preservativo que se estraga. E por fim há ainda uma diferença – estatisticamente muito significativa – entre a eficácia «de laboratório» obtida pela borracha, e a sua eficácia real, na prática concreta das pessoas, que tem a ver com a forma como ele é utilizado.
O que me impressiona muito nos colunistas que se exprimem sobre o aborto é, frequentemente, a forma como minimizam a capacidade de espermatozóide e óvulo se juntarem apesar da vontade dos respectivos progenitores (suponho que se possa dizer assim). De nada adianta vilipendiar as pessoas pelas gravidezes indesejadas. A gravidez acidental é produto de muitas circunstâncias, desde a falta de informação, ao desleixo, à indisponibilidade de anticoncepcionais. Mas é também um facto da vida, da propensão natural do ser humano para o erro e para a falibilidade. Como escrevi outro dia, «acontece, e mais vezes do que se supõe, mesmo a cidadãos íntegros e conscienciosos, infalivelmente racionais, e prudentes até à cópula.»