quinta-feira, novembro 30, 2006

Proibir piora

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Foto do filme Paris Je T’aime

A Joana Amaral Dias e o António Figueira têm trocado argumentos sobre a proibição do véu islâmico, o que ocasionou inúmeras respostas em caixas de comentários e noutros blogs. O editorial do Economist desta semana põe, a meu ver, o assunto nos exactos termos em que ele deve ser posto. Traduzo um excerto, e ainda juntei uns itálicos nas passagens que acho mais relevantes, porque há malta muito preguiçosa a ler. O original pode ser lido ali.

(…) Aqueles que defendem a proibição argumentam com quatro razões principais. Primeiro, o véu (especialmente a burqa e o niqab) exprimem, da parte dos muçulmanos, uma recusa de integração nas sociedades onde vivem; Tony Blair chamou-lhes uma «marca de separação». Segundo, esses trajes são um símbolo da opressão das mulheres muçulmanas; diz-se que elas usam os véus em grande medida graças à intimidação (ou por ordem) dos homens que as dominam. Terceiro, a exibição de símbolos religiosos é uma afronta às sociedades seculares (aspecto que tem especial ressonância em França e na Turquia). E, quarto, há espaços – a sala de aula, o tribunal – em que o uso do véu muçulmano pode ser intimidatório ou constrangedor para alunos ou para jurados.
Alguns destes argumentos são mais fortes que outros, mas nenhum deles sustenta uma proibição liminar ao estilo holandês [i.e., do que é proposto pela ministra da imigração da Holanda]. Os trajes muçulmanos podem de facto ser vistos como uma marca de separação, mas a discriminação racial e sectária é seguramente mais relevante – e a proibição dos véus e trajes religiosos é susceptível de a agravar. A opressão das mulheres muçulmanas é infelizmente muito comum, e deve ser resistida; mas muitas mulheres escolhem usar o véu por razões culturais, e outras fazem-no (por exemplo em países árabes) como um sinal de emancipação, ou até como uma opção de moda. A França e a Turquia têm tradições seculares severas, que podem ser interpretadas de maneira a justificar restrições aos símbolos religiosos; mas é preferível aplicar tais restrições com parcimónia, e só em edifícios estatais, não nas ruas. No mesmo sentido, a decisão de proibir o uso de trajes muçulmanos em tribunais ou por alunos e professores fica mais bem entregue ao sentido discricionário local do que a imposições de âmbito nacional.
Além disso, há poderosos contra-argumentos em relação à proibição dos trajes muçulmanos. Para começar, é anti-liberal impor aos outros aquilo que eles devem vestir, especialmente quando esses outros formam uma minoria religiosa. A proibição é susceptível de fomentar, em lugar de dissuadir, as perseguições e agressões com motivação religiosa. Ela dá força àqueles que sustentam que o Islão é uma religião não-europeia, apesar de haver para cima de 15 milhões de muçulmanos na União Europeia. E pode dificultar a exigência feita por países predominantemente cristãos de maior tolerância religiosa nos países de maioria muçulmana (…).
Acima de tudo, existe o risco de que a proibição, longe de desencorajar o uso do véu, sirva para o encorajar. Actualmente, só uma meia-dúzia de muçulmanas holandesas usam a burqa ou o niqab integral. Assim como o resto da Europa, os holandeses conheceram por experiência própria o perigo do radicalismo islâmico. Medidas intolerantes contra os muçulmanos são apenas susceptíveis de o agravar.

quinta-feira, novembro 16, 2006

The record shows

Yes, there were times, I’m sure you knew,
When I bit off more than I could chew.
But through it all, when there was doubt,
I ate it up, and spit it out.
I faced it all, and I stood tall,
and did it my way.

Li, com gosto, o livro que Filipe Santos Costa acaba de publicar sobre a última campanha eleitoral de Mário Soares para a Presidência da República. O livro é uma crónica detalhada, inteligentemente construída, dos vários passos que levaram Soares desde a decisão de se candidatar até à derrota de 22 de Janeiro. Li com curiosidade todas as partes que não conhecia por não ter estado envolvido – designadamente, as circunstâncias que conduziram à decisão de avançar – e li também com interesse as partes que conhecia e em que estive envolvido. Idealmente, para fazer uma crónica da decisão de avançar, teria sido interessante obter mais informação sobre as outras candidaturas, sobre a forma como as movimentações de Soares foram sendo recebidas naqueles meses de Julho e Agosto – por Alegre, evidentemente, mas também por Cavaco, e até por Jerónimo e Louçã, já que a questão da «unidade da esquerda» assumiu um significado tão relevante.
Filipe Santos Costa falou com Alfredo Barroso, Mega Ferreira, Marcos Perestrello, António Manuel, António Campos, José Manuel dos Santos, entre outros – ou seja, falou com quase todas as pessoas que acompanharam de perto o dia-a-dia da campanha. Falou com todos estes em on e, muito provavelmente, com a maioria deles também em off. É possível que ainda tenha falado com Vasco Pulido Valente (para a história de um almoço), ou pelo menos com Constança Cunha e Sá, que assina o prefácio. As fontes são boas e permitem-lhe reconstruir aspectos cruciais e desconhecidos da campanha com bastante minúcia.
Isto não significa, naturalmente, que não encontre defeitos no relato. O principal é que Filipe Santos Costa está notoriamente mais à vontade a falar de factos que investigou do que a caracterizar psicologicamente os personagens, ou a descrever «estados de alma». A meu ver, as páginas iniciais, que se debruçam sobre os dias da derrota (o sábado de reflexão e o domingo eleitoral) são talvez as mais fracas, porque há poucos factos para relatar, ou quase nenhuns, e muitas «disposições». Filipe Santos Costa não resiste aqui a uma certa tentação de omnisciência – dizer o que os intervenientes estavam a pensar e a sentir para lá daquilo que eles próprios expressaram – e não evita retratar situações de forma um pouco teatralizada, quando a realidade foi talvez um pouco mais rugosa e menos «literária».
Aliás, a questão «psicológica» talvez não seja de pequena monta, e aqui encontro o segundo problema importante do livro. Se pensarmos no plano histórico, é pouco provável que esta campanha de Mário Soares venha a ser vista como um acontecimento relevante; é no plano «psicológico», «humano», que uma candidatura destas, inesperada, «ilógica», oferece uma oportunidade de ouro para fazer um retrato do personagem. Ora, os talentos de Filipe Santos Costa estão notoriamente mais do lado da investigação jornalística (dos factos) e da sua articulação inteligente do que do lado da construção literária (do personagem). É certo que quem queira perceber como e porquê Soares perdeu esta eleição, encontrará no livro a resposta. Mas isso ainda deixa em aberto duas perguntas: Quem? E por quê, se a derrota parecia inevitável a quase todos desde o início? Fico a pensar que o talento de Filipe Santos Costa promete bastante para outros trabalhos de investigação (uma boa crónica do processo Casa Pia desde que rebentou o escândalo, por exemplo, parece-me muito necessária), mas que os detalhes da campanha falhada de Mário Soares só poderão interessar a poucos como eu. Talvez me engane.
De todas as formas, ainda que Filipe Santos Costa não invista (felizmente) o seu trabalho a tentar desenhar um perfil psicológico de Soares, alguma coisa emerge do relato. Tenho para mim que, na sua aparente simplicidade, ou talvez mesmo por causa da sua aparente simplicidade (dizer o que lhe apetece e fazer quase sempre o que quer), Soares é das personagens mais complexas que me foi dado conhecer. Indagações sobre o que motiva a sua acção, sobre o que pretende, são o mais das vezes fúteis e falíveis. Mas um retrato do que foi Soares nesta campanha, da combinação de uma certa inabilidade política com uma determinação, uma energia, uma obstinação extraordinárias, essa imagem emerge claramente deste livro. Sem que Filipe Santos Costa seja condescente, a sua admiração, o seu espanto, perante este personagem singular também transparece, nítida. E a imagem que resulta é, quer-me parecer, muito próxima daquela que eu próprio tinha ao finalizar a campanha. Foi na hora da derrota que Filipe Santos Costa viu os apoiantes da candidatura gritando mais empolgadamente «Soares é fixe» perante o seu candidato, num momento em que a circunstância propriamente política já estava em boa medida superada. Foi com o My Way que nós no Super Mário terminámos a campanha. Não deve ser por acaso.

[Filipe Santos Costa, 2006, A Última Campanha, ed. Palavra, Lisboa.]

quinta-feira, novembro 09, 2006

Carta aberta ao Director do Público

Exmo Senhor,
A campanha neo-con que V. Exa. prossegue na direcção desse jornal tem conhecido, até hoje, muitos episódios lamentáveis. Mas
a capa da edição da última segunda-feira é positivamente um nojo. A manchete «Tribunal iraquiano condena Saddam Hussein à morte» é ilustrada com uma foto do taxista Khatab Ahmed de braços no ar, celebrando, na sua casa. O que simboliza o taxista Ahmed? A alegria unânime do povo iraquiano pela condenação do tirano? Ou a celebração do próprio jornal Público? A pergunta é necessária, pois a foto não ilustra directamente o acontecimento noticiado – não é uma foto do tribunal, ou do réu – mas uma reacção à sentença.
Basta consultar qualquer órgão de imprensa para concluir que a condenação por enforcamento de Saddam Hussein não foi recebida com uma celebração unânime, mas, pelo contrário, com uma profunda divisão segundo as linhas étnicas que neste momento colocam extensas áreas do país em guerra civil. Nas zonas de maioria sunita, a sentença foi acompanhado de um decreto de recolher obrigatório para obviar aos protestos, e em Tikrit tal decreto não pôde sequer ser cumprido face à magnitude das manifestações. O Público opta por ilustrar uma condenação à morte com uma celebração – mas, em termos noticiosos, não se percebe porquê.
Na mesma capa do jornal encontramos em destaque uma frase entre aspas que diz tratar-se de uma «sentença irrelevante face ao que se vive no Iraque». Sem outro contexto, somos levados a acreditar que esta é uma apreciação objectiva sobre a forma como a sentença foi recebida no país. Mas basta abrir o próprio jornal para constatar que a frase é retirada de um artigo de opinião de Francisco Teixeira da Mota. E mais: lendo o artigo – uma condenação rotunda da sentença – rapidamente se percebe que o autor não diz que o enforcamento de Saddam terá efeitos neutros, mas que, face à gravidade da situação que se vive no Iraque, nem sequer são de esperar quaisquer benefícios decorrentes da sentença. Aliás, o texto de Teixeira da Mota é tão contundente, tão crítico da decisão do tribunal, que sobram fundadas dúvidas sobre se terá sido ele a escolher um título ambíguo e neutro para um
texto tão veemente.

«Um tribunal constituído de forma pouco transparente e em que o juiz presidente, apesar da confiança que nele depositavam os novos poderes iraquianos e os EUA, se veio a afastar por pressões políticas sendo substituído por um juiz, este sim, de inteira confiança. Se a isto acrescentarmos o assassínio de três advogados da defesa de Saddam Hussein, não nos precisamos sequer de lembrar dos inúmeros incidentes ocorridos ao longo do julgamento, com expulsões dos réus da sala de audiências e greves de fome, para concluirmos que este processo e a sentença proferida não se enquadram naquilo a que, usualmente, chamamos Justiça. Tanto a Amnistia Internacional como a Human Rights Watch foram, de resto, claras ao apontarem as insuficiências deste processo.
Saddam Hussein deveria ter sido julgado por um tribunal internacional, independente e imparcial, tendo em conta o facto de estarem em causa crimes contra a humanidade bem como a forma como foi deposto e obrigado a responder pelos seus crimes.
Mas, face a esta sentença, para além de entender que uma eventual morte nada acrescentará de positivo a todas as anteriores e de deplorar que a mesma tenha sido proferida de forma tão ajustada ao calendário eleitoral norte-americano, não posso, sobretudo, deixar de lamentar que a mesma já seja tão irrelevante face à situação que se vive no Iraque…»

Por fim, na página seguinte temos ocasião de conhecer directamente o pensamento de V. Exa., por meio de um editorial sintomaticamente intitulado «Apesar de tudo…» – incluindo as reticências. A V. Exa. terá faltado a coragem (de que ultimamente se vangloria nas próprias colunas editoriais) para celebrar expressamente a condenação à morte. Mas lá vai dizendo que, enfim, um julgamento no próprio país é «sempre melhor do que num tribunal internacional», e que os julgamentos de Nuremberga e Milosevic também não foram propriamente imparciais. Bastava-lhe ler, por exemplo, o que Pedro Magalhães escreveu no seu próprio jornal, no início deste processo, para saber que os tribunais nacionais não são sempre melhores, em países que atravessam guerras civis e onde o veredicto não é susceptível de ser produzido de maneira independente nem aceite de forma generalizada. Mas o que, além disso, V. Exa. esquece é que os processos de Nuremberga e de Milosevic não decorreram na sequência de invasões de países realizadas sob falsos pretextos. Milosevic foi levado à justiça depois de ser destituído no seu próprio país por um levantamento democrático, e presumo que dos nazis não preciso de falar.
O problema com a condenação de Saddam nem é tanto a questão geral da pena de morte, porque aqui, pelo menos, parece afastada a possibilidade de erro judicial. O que é trágico – e não é menos trágico só por ser esperado – é que este enforcamento será o corolário de uma guerra ilegal e injusta. E à ilegalidade e injustiça acresce a situação em que a invasão deixou o país, destruído, numa guerra civil sem fim à vista, com um número de mortes que pode ascender às centenas de milhar. Esse aspecto – esse aspecto simbolicamente confirmado com o enforcamento do anterior tirano, destituído pela operação militar anglo-americana – esse aspecto é que não será esquecido, nem pelos iraquianos nem pelos outros povos do mundo em geral.
Este enforcamento não será «irrelevante».

Some guys have all the luck

Don’t date him, girl é o nome de um site norte-americano, visitado diariamente por seiscentas mil a um milhão de pessoas, em que as mulheres inscritas (cerca de 720.000) depositam informações sobre homens que as enganaram, ou que elas acham que as enganaram. Há 18 mil delinquentes recenseados. O assunto tem sido tratado por jornais no mundo inteiro (incluindo em Portugal), que geralmente se focam na devassa da privacidade pela internet, na possibilidade de difamação e nas acções jurídicas intentadas por alguns destes homens, que se sentem injustiçados. Mas o aspecto mais interessante do caso talvez esteja antes disso – no facto em si, na ideia do site.
O nome, desde logo, é sugestivo: «don’t date him, girl», e o «girl» final não tem outra função que não seja enfática, maternal, apaziguadora. «Girl» é «rapariga», mas é também «menina». Depois há este paradoxo muito curioso: todos os depoimentos têm como ponto de partida uma mulher que diz às outras para elas não fazerem, não experimentarem, não tentarem aquilo que ela mesma já tentou. A ambivalência que está contida nisto, nalguns casos, é muito manifesta. Veja-se o caso de Todd Hollis, um dos mais badalados, que é descrito assim por uma das suas ex-namoradas:

«Escuro e atraente, parece um sonho de chocolate. Até que o conheces. (…) Tem casos em todos os códigos postais dos EUA. É uma bomba («He’s hot»)… Não se deixem enganar por ele, meninas.»

É difícil imaginar um texto promocional que fosse mais convidativo. Este homem é simplesmente irresistível (um sonho, um doce, uma bomba); a única maneira de o evitar é manter-se à distância, porque ele tem magias que enfeitiçam mulheres através de um continente inteiro.
É claro que o que aqui está presente – ou presente pela ausência – é a culpa. «Don’t date him, girl» denuncia os homens, culpabiliza-os, ao mesmo tempo que paternaliza as mulheres, para evadir o problema da culpa. Um homem irresistível é um homem a que não se pode resistir. Uma mulher que não pode resistir é uma mulher que não tem responsabilidade nem culpa. A mulher não é bem uma mulher: é uma rapariga, é uma menina. Culpa – mas de quê?
Acho muito interessante como permanece vivo o problema da culpa com relação ao sexo em sociedades supostamente liberais - em sociedades, dizem-nos todos os dias, completamente liberais no domínio do sexo, excessivamente libertadas. O que este site ilustra - e a própria foto da criadora do site, Tasha Joseph, ilustra - é o paradoxo de uma sociedade em que os padrões estéticos se sexualizaram muitíssimo (Tasha Joseph é uma mulher «arranjada», «produzida», «atraente»), mas isso convive com um discurso sobre o sexo que não mudou muitíssimo. A mulher pode ter relações sexuais fora do casamento - mas elas têm de ser justificadas por um imaginário romântico tradicional, ou por uma irracionalidade, uma anulação da vontade própria (o homem «irresistível»). Fantasias que remetem para a violação – fantasias de serem aprisionadas, encostadas à parede, assoberbadas durante o acto sexual – são as mais comuns, e, em muitos casos, talvez o único mecanismo que permite à mulher libertar-se da culpa.
Um site destes poderia ser feito por homens? «Não saias com ela, rapaz, que é um perigo, vais estar indefeso e vulnerável, ela é uma bomba irresistível»? Um site desses estaria cheia de fotos das mulheres «irresistíveis» – mas seriam, suspeito, fotos de outra natureza. E seria possível em países de costumes liberais e igualdade sexual, como a Suécia, ou a Dinamarca? Existe nos EUA, em grande escala pública, com um milhão de visitas por dia; em breve existirá em espanhol, e algo me diz que em Portugal também não seria impossível.

quinta-feira, novembro 02, 2006

Volver



Voltei a ver Volver, de Almodóvar, e gostei ainda muito mais à segunda. Os aspectos da história propriamente dita, a relação com a morte (que para o próprio realizador são os centrais no filme), tornaram-se menos importantes do que a homenagem a Anna Magnani, na personagem de Penélope Cruz. É uma felicidade que haja algum realizador vivo a filmar assim, e eu não vou dizer um realizador espanhol, ou ibérico, ou europeu - basta vivo. Tudo, desde o travelling inicial à direcção de actores. Pode não ser tão extraordinário como outros filmes de Almodóvar, porque ele tem uma série de obras-primas, mas é preciso ser ceguinho para não ver aqui um dos melhores filmes do ano.
Um bom trailer aqui.

Existe?

Vaya País! é um livro recentemente editado, em que dezoito correspondentes da imprensa estrangeira radicada em Espanha escrevem sobre as singularidades do país que os acolheu. Os textos assentam, em geral, em episódios pontuais, pormenores anedóticos dos quais extraem considerações largas, muitas vezes exageradas, sobre a psique dos espanhóis e a sua maneira de ser. Muitos estereótipos vêem-se confirmados: o suíço repara na desordem, na falta de sentido cívico, no egocentrismo; a inglesa, em como são diferentes os hábitos na bebida; o alemão encanta-se com a informalidade no trato; a italiana comenta as modas; a japonesa reflecte sobre problemas de comunicação. Mas o português tem uma singularidade: o português fala de Portugal.
«Portugal existe» é o título bem expressivo do texto de Nuno Ribeiro, correspondente do Público há quase 15 anos em Madrid, mas um dos três que não escreveram o seu texto em castelhano (para provar que Portugal existe?). Ribeiro fala sobre Portugal, no espelho espanhol: a forma como eles nos vêem, a persistência de estereótipos antigos sobre um povo «amável», de bons atoalhados e 1001 maneiras de cozinhar bacalhau; o desconhecimento, o desinteresse, o paternalismo. Nuno Ribeiro começa com a história dos esforços diplomáticos portugueses, no final dos anos oitenta, para que nos mapas metereológicos dos media espanhóis o rectângulo do lado adquirisse um nome (em vez de ficar incógnito, ou sem fronteira desenhada, ou um mero espaço vazio como se o mar fosse até Badajoz). E termina com as dificuldades que encontra para ser Ribeiro, não «Ribero», e como prescindiu de ser «Afonso», face à inevitabilidade de ficar para sempre «Alfonso».
Curiosa coisa esta: dezoito correspondentes, todos falando sobre os outros, sobre os espanhóis, excepto um. Todos fazendo comparações com o seu próprio país, uns com graça, outros com rigor – excepto um. Um, um só, apenas um, fala e se pergunta sobre o seu próprio país: como nos vêem, se nos percebem, se existimos. Estranha coisa esta, até que voltamos ao início e lemos as primeiras linhas do prefácio, de Miguel Ángel Bastenier, jornalista do El País. Diz assim:

«Dieciocho corresponsales extranjeros en Madrid de diez nacionalidades diferentes – si es que la portuguesa es de verdad extranjera (…)»

Se existe? No creo. Pero que lo hay…