segunda-feira, setembro 29, 2008

Nós roemos


Há duas maneiras de assinalar, hoje, o centenário da morte do escritor brasileiro Machado de Assis. (Há mais.) Das dez da manhã às seis da tarde, na casa Fernando Pessoa (um lugar que para mim se tornou menos simpático desde que a atual diretora tomou posse), faz-se leitura integral de
Memórias Póstumas de Brás Cubas. «Faz-se» significa que lê quem quiser ler e estiver presente. (Também podia ser o Dom Casmurro ou alguns contos.) Na Gulbenkian, há um colóquio sobre Machado de Assis, com intervenções dos maiores especialistas, como John Gledson ou Abel Barros Baptista.
Machado de Assis é para mim um conhecimento relativamente recente. Só o descobri mesmo com a leitura da antologia de contos
organizada por Abel Barros Baptista para a coleção da Cotovia. Depois li Memórias Póstumas e reli Dom Casmurro. É isso mesmo: reli Dom Casmurro. À primeira (e olhem que não foi assim há tanto tempo), tinha-me passado completamente ao lado. Foram os contos que me permitiram descobrir o que tinha lido antes.
Há quem diga que Machado de Assis é o maior ficcionista da língua portuguesa. Isto, dito por pessoas que sabem do que falam. É para mim, mas desconheço quase tudo.

OS VERMES

"Ele fere e cura!". Quando, mais tarde, vim a saber que a lança de Aquiles também curou uma ferida que fez, tive tais ou quais veleidades de escrever uma dissertação a este propósito. Cheguei a pegar em livros velhos, livros mortos, livros enterrados, a abri-los, a compará-los, catando o texto e o sentido, para achar a origem comum do oráculo pagão e do pensamento israelita. Catei os próprios vermes dos livros, para que me dissessem o que havia nos textos roídos por eles.

— Meu senhor, respondeu-me um longo verme gordo, nós não sabemos absolutamente nada dos textos que roemos, nem escolhemos o que roemos, nem amamos ou detestamos o que roemos; nós roemos.

Não lhe arranquei mais nada. Os outros todos, como se houvessem passado palavra, repetiam a mesma cantilena. Talvez esse discreto silêncio sobre os textos roídos fosse ainda um modo de roer o roído.

segunda-feira, setembro 22, 2008

Um video do Maradona a fazer o aquecimento, quando ele era jogador do Nápoles, nos anos 80:


Quem gostar de ler, também pode entreter-se com
isto.

sábado, setembro 13, 2008

Democrático

Sim, eu tenho amigos de direita, mas da direita democrática: gente que se cumprimenta com dois beijinhos.

quinta-feira, setembro 11, 2008

A fama póstuma

Reparei agora que o post que esforçadamente escrevi sobre O Céu sobre Lisboa ficou com o seguinte endereço:

Exatamente: «O cu sobre», porque o
blogger não reconhece letras com acento. Outra coisa interessante é que, neste post do maradona, um comentador Tiago informa que «Infelizmente o autor do blog em causa [O Céu sobre Lisboa] faleceu há uns meses.» Notem a linguagem ponderosa: «infelizmente» e – é quase jurídico – «o blog em causa». É esta escolha de palavras que dá credibilidade ao texto.
Acho que o Pedro Ornelas acharia graça aos caminhos da fama póstuma. É o género de ironia do quotidiano que não morreu com ele.

sábado, setembro 06, 2008

Um aviso feito a tempo


na Fajã de João Dias, ilha de São Jorge (Açores). Clicar para ler

As alminhas que aqui vêdes
de labarédas vestidas,
quem sabe se representam
as vossas almas queridas.

(e, mais acima)

Entre o Purgatório e o Céu
quantas vezes não vai mais
que o passo do Padre Nosso
resado quando passais.

sexta-feira, setembro 05, 2008

Revista de blogs

No dia de hoje, há setenta anos, Orwell passou ao largo da costa portuguesa, assinalando o cabo da Roca e o cabo de São Vicente. O dia estava “very hot, and the sea bright blue”. Orwell avistou gaivotas de um tipo que não conhecia, que se chegavam muito perto da água “como mochos sobre a relva”, e também andorinhas; disseram-lhe que na véspera se tinham visto baleias. Sei isto porque está escrito no seu diário, agora organizado como um blog.
Dentro do mesmo género, mas com observações mais completas e interessantes, no dia de hoje, há quatro anos, Pedro Ornelas divertiu-se com o SATU,
o «veículo» de Paço de Arcos; há três anos, estava na Madeira e tomou umas notas sobre a praça de táxis e sobre o cais; e há um ano, nesta mesma data, topou uns cavalos a galarem-se nuns painéis da Igreja de S. Tiago, em Évora.

quinta-feira, setembro 04, 2008

Que há com o pato?


The ultimate Republican ticket

O Pedro Magalhães volta à metáfora estafada de que, se pudesse votar nas eleições americanas, votava nos Democratas mesmo que o candidato fosse o Pato Donald. O Pato, sempre o Pato, outra vez o Pato – por quê o Pato? Não há personagens piores, mais incapazes ou mais ridículas, na história da ficção, do que o Pato Donald? Por que não o Homer Simpson? Bart? Mr. Burns? (Não, esse é do Partido Republicano). O Smithers?
Mas houve uma ocasião em que o Pato Donald de facto foi a votos. Eu devia ter uns oito anos quando organizei a primeira eleição, em família. Não havia um posto específico em jogo; era uma eleição
como jogo, o que era talvez normal para uma cabeça moldada pela experiência das presidenciais de 1980 e por passar os domingos à tarde com um jogo de sociedade chamado “As eleições e os partidos”. Os dois candidatos eram o Tio Patinhas e o Pato Donald e, de acordo com a dinâmica eleitoral, acabou por resultar convencionado que o Tio Patinhas era o candidato da direita e o Pato Donald o da esquerda.
A história da derrota do Pato Donald é um pouco embaraçosa. Naquela tenra idade em que os instintos se revelam mais crus, foi precisa uma certa ajuda minha para decidir o resultado. Esquerda e direita, a família dividiu-se ao meio. Uma avó, porém, tinha votado no Pato Donald de forma que considerei irregular (uma cruzinha fora do quadrado? Já não me lembro), fechando os olhos ao facto de que um avô tinha votado Tio Patinhas de forma igualmente irregular (não preencheu o boletim e deu-me simplesmente um papelinho com o nome escrito: Tio Patinhas). Graças a este expediente, o milionário de Patópolis venceu a eleição sem posto pela estreita margem de doze a onze, ou coisa parecida.
O Pato Donald candidato da esquerda, o eleitorado dividido ao meio e o resultado decidido com uma chapelada. O meu pequeno sufrágio familiar antecipou a grande política americana em duas décadas; quem diria.

O tabuleiro de "As eleições e os partidos" pode ser visto neste forum dedicado ao museu do brinquedo, de Sintra.

Crónica de Luís Fernando Veríssimo, Sexo na Cabeça. Clicar na imagem para ler.

segunda-feira, setembro 01, 2008

O Céu sobre

A livraria Esperança, no Funchal, que conheci através do Pedro Ornelas

Em férias, sou surpreendido pela notícia da morte do Pedro Ornelas.

Deixem-me que tente dizer por que é que (como assinalei antes muitas vezes),
O Céu sobre Lisboa era o meu blog preferido.
Uma vez eu estava na Madeira, já lá estava há uns três ou quatro dias, e lembrei-me de lhe enviar um email a pedir sugestões, porque ele tinha falado várias vezes da Madeira no
blog (o Pedro passou anos da adolescência no Funchal e tinha família lá). Por coincidência – isto foi no réveillon de 2005/6 – ele também estava no Funchal. Tudo o que vi na Madeira nos dias seguintes devo-o ao Pedro, e poderia ter ficado mais uma semana na ilha, porque havia mais para ver. Vejam bem: eu até estava com pessoas de lá; mas nem toda a gente tem o olho do Pedro. Os primeiros dias foram pardacentos, os seguintes excelentes. Este ano, em São Paulo (novamente estando com pessoas de lá), fiz a mesma coisa, porque me lembrava do entusiasmo com que o Pedro tinha falado da viagem dele à cidade. Em resposta, recebi um email de duas páginas. (Muitas das coisas que o Pedro referia até eram no bairro onde eu estava instalado, e não as tinha visto.)
Há muito tempo que eu tinha o desejo de fazer algum projecto de trabalho com o Pedro: uma revista, um guia de viagens, um documentário. (É uma pena que o Pedro não tenha escrito um livro de viagens.) O Pedro tinha um olho raro, curioso, inteligente, culto, sensível. Tinha também um tom pouco comum na escrita. Como se fosse tudo um pouco
subdued. Os entusiasmos apareciam de forma entusiástica, sem dúvida (e havia muitos entusiasmos no blog dele), mas os textos nunca tinham a menor fanfarronice. (Essa coisa rara, não haver fanfarronice). Parece haver uma dúvida a atravessar a escrita, mas é uma dúvida inquisitiva, curiosa. Os textos eram limpos, impecáveis, irrepreensíveis. E eu tenho descoberto muitas coisas através da blogosfera, mas as coisas de que falava o Pedro eram daquelas em que eu atentava mais. Houve os passeios pela Madeira, as sugestões de São Paulo, mas há discos, blogs, livros que ainda recentemente comprei por me lembrar de ele ter falado. Livros que vou ler por causa do Pedro, e entretanto o Pedro até já morreu.

Eu e o Pedro não nos conhecíamos bem. Descobri-o no Agosto de há quatro anos (estava eu, justamente, em São Paulo),
através de um email que ele escreveu para o blog do Francisco José Viegas e que me impressionou. Devemos ter-nos encontrado meia-dúzia de vezes. Há assim estas recordações dispersas. Um sms dele, uma vez, estava eu em Bombaim, a comentar a saída do Mário Mesquita de colunista do Público. Respondi: “Não sei de nada, estou em Bombaim.” Resposta dele: “Então, e isso é giro?”
O Pedro, ao que apurei, deve ter morrido no dia 10 de Agosto, domingo, de manhã, no hospital, na sequência de complicações decorrentes de uma operação ao fígado. (Eu só soube quase três semanas depois, e através de um amigo meu que nem sequer o conhecia.) Suponho que ele teria talvez 45 anos, ou coisa parecida. Acho que nunca foi a Bombaim nem voltou ao Brasil. Não sei se foi a São Jorge e às Flores, onde eu estava na semana em que tive a notícia, mas acho que ele teria certamente gostado muito dessas ilhas. Não escreveu um livro de viagens, e juntos não vamos fazer nenhuma revista nem sequer nenhum documentário.
É uma perda muito triste.

Muitas vezes enviei
posts do Pedro, por email, a amigos. Uma boa maneira de ler o blog é – como em todos – começar pelo princípio.


From: Pedro Ornelas
Date: Jan 2, 2006 1:45 AM
Subject: Re:
To: Ivan Nunes


Sugestões instantâneas. Comer peixe no Doca do Cavacas, a uns 5 km do centro, direcção oeste, à beira mar. Relação qualidade-preço imbatível, comida, localização e serviço impecáveis, convém marcar mesa. Tomar um café ou qualquer outra coisa na esplanada do Clube Naval (embora não tenha a certeza se está aberto nesta altura) ou na do Palheiro Golf. Beber um copo à noite no bar do Savoy Hotel, que vai ser demolido em breve e tem um ambiente que faz lembrar os filmes do 007 dos anos 60. Ir de manhã cedo ao pico do Areeiro (a essas horas há mais probabilidades de conseguir ver alguma coisa nesta época do ano). Ir almoçar ao Seixal (ao lado do cais, não me lembro o nome mas é o único neste sítio) ou à Fajã da Areia, perto de S. Vicente (também não me lembro o nome mas tem uma esplanada, fica na estrada do lado oposto ao mar, e servem um polvo muito bom). Capítulo bares no Funchal, o mais bonito é o Look, que fica no molhe da Pontinha e abre à tarde e à noite. Se quiseres visitar uma das livrarias mais disfuncionais do mundo, vai à Esperança na rua dos Ferreiros. Vale a pena, embora comprar livros seja difícil. O museu de arte contemporânea no forte de São Tiago vale pelo edifício, um antigo forte filipino à beira mar, e o mesmo vale para o novíssimo Centro Cultural Casa das Mudas, na Calheta.