quinta-feira, abril 26, 2007

Littell: o silêncio e a escrita

O Le Monde de sábado trazia um texto de Jonathan Littell (o escritor franco-americano que este ano ganhou o prémio Goncourt) sobre o massacre na universidade no estado de Virginia. É um artigo interessante, que resolvi traduzir, com o auxílio da minha mãe, do André Belo e do Paulo Varela Gomes, que foi de resto quem me chamou a atenção para ele.


Cho Seung-hui, ou a escrita do pesadelo
Jonathan Littell
Le Monde, 21. Abril. 2007

Antes de abater friamente 32 pessoas e de virar a arma para si mesmo, Cho Seung-hui, o assassino de Virginia Tech, escrevia, fica-se agora a saber, peças de teatro; duas delas estão hoje disponíveis na internet, cortesia de um dos seus antigos colegas.
Lendo-as, ninguém poderá dizer que Cho Seung-hui tinha talento; contudo, essas breves peças, desajeitadas e juvenis, dizem-nos cruamente, muito melhor do que muitas obras publicadas, a verdade de uma raiva sem fundo; e, se quisermos adoptar para nós a definição de literatura proposta por Georges Bataille, a de textos aos quais «o seu autor foi visivelmente constrangido», então devemos reconhecer que, de uma certa maneira, aqui há literatura, uma forma de literatura: qualquer coisa que se diz.
O que me impressiona são as reacções imediatas dos seus colegas de turma: um deles escreve na net que as suas peças «pareciam saídas de um pesadelo», e que ao lê-las os estudantes se perguntavam entre si se ele iria tornar-se um novo «assassino escolar» (“a school killer”). «Quando os estudantes criticaram a sua peça na aula, nós escolhemos as palavras com cuidado, para o caso de ele ter decidido passar-se dos carretos.» Haveria muito a dizer sobre a visão do mundo veiculada por esta palavra: «decidido». Não foram só os estudantes que ficaram apavorados com os textos de Cho Seung-hui: a professora de escrita, uma poeta conhecida, «intimidada» pelos seus poemas «obscenos e violentos» e pelas suas maneiras, expulsou-o da turma; a directora do departamento de inglês da universidade, ao ler as suas peças, ficou de tal forma perturbada que deu conta disso aos seus superiores e à polícia, que responderam, para desespero dela, que «não podiam fazer nada».
Ora Cho Seung-hui, com os seus recursos insignificantes, inábeis, dizia muito naquelas poucas páginas: o terror abjecto do adolescente de contornos imprecisos, terror que assalta o corpo vindo de todos os lados, que regressa como merda, velhice, obesidade, obsessão da sodomia, que é figurada sob a forma de comida que empanturra (uma barra de cereais com sabor a banana enfiada na boca do padrasto odiado, bela metonímia), do interdito oposto ao jogo (três fugitivos, menores, encontram-se num casino de onde serão expulsos depois de terem ganho), de uma mãe passiva e violada, da angústia do incesto (que claramente se apresenta aqui como fantasma devastador do adolescente, que procura por todas as formas provocar o gesto assassino que o matará).
Já é muito, mesmo que num outro plano seja pouco, e apesar de ter tanto que ver com a psicopatologia como com a literatura: alguma coisa começa a falar, que é precisamente aquilo que Cho Seung-hui não sabia fazer («Respondia por monossílabos», «Nunca procurava ter uma conversa», «Creio que nem nunca lhe ouvi a voz»). E no entanto ninguém, nem colegas, nem professores, aceitou ver aqui textos: para eles, não houve senão ameaça, um grito no limite da inarticulação.

PASSAGEM AO ACTO
Eles dizem-no explicitamente: a partir do momento em que o lemos, soubemos (supusémos) que se tratava de um assassino (potencial); a ninguém ocorre que talvez se tenha tornado num assassino porque ninguém o soube ler. Não podemos especular, com tão poucos elementos, sobre aquilo que habitava Cho Seung-hui, sobre o que veio a interpor uma barreira entre ele e o mundo. Mas este dado parece-me importante: antes de comprar as armas, Cho Seung-hui tentou escrever, encenar, perante os seus pares, elementos da sua desordem.
Concluiu-se, conclui-se sempre, que essa tentativa era um assunto da ordem da psiquiatria, ou mesmo um caso de polícia, e não de literatura – que, no entanto, desde que existe, não faz outra coisa senão dizer o que não pode ser dito de outra forma. Só quando ela lhe foi recusada (e quando ela, também, se lhe recusou; e ele próprio se submeteu a essa recusa) é que ele passou ao acto.
E, quando se pôs a matar, fê-lo em silêncio.