quinta-feira, abril 26, 2007

Littell: o silêncio e a escrita

O Le Monde de sábado trazia um texto de Jonathan Littell (o escritor franco-americano que este ano ganhou o prémio Goncourt) sobre o massacre na universidade no estado de Virginia. É um artigo interessante, que resolvi traduzir, com o auxílio da minha mãe, do André Belo e do Paulo Varela Gomes, que foi de resto quem me chamou a atenção para ele.


Cho Seung-hui, ou a escrita do pesadelo
Jonathan Littell
Le Monde, 21. Abril. 2007

Antes de abater friamente 32 pessoas e de virar a arma para si mesmo, Cho Seung-hui, o assassino de Virginia Tech, escrevia, fica-se agora a saber, peças de teatro; duas delas estão hoje disponíveis na internet, cortesia de um dos seus antigos colegas.
Lendo-as, ninguém poderá dizer que Cho Seung-hui tinha talento; contudo, essas breves peças, desajeitadas e juvenis, dizem-nos cruamente, muito melhor do que muitas obras publicadas, a verdade de uma raiva sem fundo; e, se quisermos adoptar para nós a definição de literatura proposta por Georges Bataille, a de textos aos quais «o seu autor foi visivelmente constrangido», então devemos reconhecer que, de uma certa maneira, aqui há literatura, uma forma de literatura: qualquer coisa que se diz.
O que me impressiona são as reacções imediatas dos seus colegas de turma: um deles escreve na net que as suas peças «pareciam saídas de um pesadelo», e que ao lê-las os estudantes se perguntavam entre si se ele iria tornar-se um novo «assassino escolar» (“a school killer”). «Quando os estudantes criticaram a sua peça na aula, nós escolhemos as palavras com cuidado, para o caso de ele ter decidido passar-se dos carretos.» Haveria muito a dizer sobre a visão do mundo veiculada por esta palavra: «decidido». Não foram só os estudantes que ficaram apavorados com os textos de Cho Seung-hui: a professora de escrita, uma poeta conhecida, «intimidada» pelos seus poemas «obscenos e violentos» e pelas suas maneiras, expulsou-o da turma; a directora do departamento de inglês da universidade, ao ler as suas peças, ficou de tal forma perturbada que deu conta disso aos seus superiores e à polícia, que responderam, para desespero dela, que «não podiam fazer nada».
Ora Cho Seung-hui, com os seus recursos insignificantes, inábeis, dizia muito naquelas poucas páginas: o terror abjecto do adolescente de contornos imprecisos, terror que assalta o corpo vindo de todos os lados, que regressa como merda, velhice, obesidade, obsessão da sodomia, que é figurada sob a forma de comida que empanturra (uma barra de cereais com sabor a banana enfiada na boca do padrasto odiado, bela metonímia), do interdito oposto ao jogo (três fugitivos, menores, encontram-se num casino de onde serão expulsos depois de terem ganho), de uma mãe passiva e violada, da angústia do incesto (que claramente se apresenta aqui como fantasma devastador do adolescente, que procura por todas as formas provocar o gesto assassino que o matará).
Já é muito, mesmo que num outro plano seja pouco, e apesar de ter tanto que ver com a psicopatologia como com a literatura: alguma coisa começa a falar, que é precisamente aquilo que Cho Seung-hui não sabia fazer («Respondia por monossílabos», «Nunca procurava ter uma conversa», «Creio que nem nunca lhe ouvi a voz»). E no entanto ninguém, nem colegas, nem professores, aceitou ver aqui textos: para eles, não houve senão ameaça, um grito no limite da inarticulação.

PASSAGEM AO ACTO
Eles dizem-no explicitamente: a partir do momento em que o lemos, soubemos (supusémos) que se tratava de um assassino (potencial); a ninguém ocorre que talvez se tenha tornado num assassino porque ninguém o soube ler. Não podemos especular, com tão poucos elementos, sobre aquilo que habitava Cho Seung-hui, sobre o que veio a interpor uma barreira entre ele e o mundo. Mas este dado parece-me importante: antes de comprar as armas, Cho Seung-hui tentou escrever, encenar, perante os seus pares, elementos da sua desordem.
Concluiu-se, conclui-se sempre, que essa tentativa era um assunto da ordem da psiquiatria, ou mesmo um caso de polícia, e não de literatura – que, no entanto, desde que existe, não faz outra coisa senão dizer o que não pode ser dito de outra forma. Só quando ela lhe foi recusada (e quando ela, também, se lhe recusou; e ele próprio se submeteu a essa recusa) é que ele passou ao acto.
E, quando se pôs a matar, fê-lo em silêncio.

Sonhar com piratas

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Este foi o belíssimo texto do Paulo Varela Gomes que saiu no Público do último domingo, com uma «chamada» parva sobre o «politicamente correcto».


A fama, a morte e as vidas de Emílio Salgari
Paulo Varela Gomes
Público, 22 de Abril de 2007

Quando o conhecido intelectual italiano Umberto Eco foi à Índia pela primeira vez, em 2005, com 73 anos de idade, respondeu assim à pergunta de Devika Sequeira, uma jornalista goesa do “Deccan Herald” surpreendida com essa descoberta tão tardia: “Houve pelo menos quatro gerações de italianos que cresceram a ler os livros de Emílio Salgari, o romancista do século XIX que também era muito popular no mundo de língua espanhola. Escreveu livros de aventuras passadas por toda a parte: na África, nas Caraíbas. Mas os mais importantes eram na Índia. Todos os italianos da minha geração e da geração do meu pai conhecem a Índia perfeitamente porque Salgari explicava tudo desde as árvores “banian”, até aos rios, às pessoas, aos costumes…”.
Eco estava a ser simpático para a jornalista porque Emílio Salgari não escreveu muitos livros sobre a Índia, mas é significativo que lhe tenha ocorrido invocá-lo.
De facto, Salgari foi muito provavelmente o escritor mais lido pelos rapazes europeus e latino-americanos (os rapazes, não as raparigas) entre o início do século XX e a década de 1970. Deve ser muito difícil encontrar um italiano, um espanhol, um francês, um português, um mexicano ou um argentino, com mais de 45 anos de idade, que não tenha lido os livros de Salgari no início da adolescência.
Em Portugal, esses livros foram publicados pelas edições Romano Torres logo no início do século. Na década de 1960, cada título da famosa “Colecção Salgari”, desde o nº 1, “A Montanha da Luz”, ao nº 152, “Sandokan e a Pantera de Sunderbunds”, custava 15 escudos. Eram livrinhos com umas 120 páginas em média, de formato 12 por 19, e belas capas com desenhos de origem italiana mostrando personagens de cores vivas e gestos violentos. Nunca comprei nenhum mas li-os todos. Os meus pais estavam ausentes em Peniche ou Caxias e o meu avô e tios, que cuidavam de mim, do meu irmão e das minhas irmãs, não tinham dinheiro para luxos. Mas também não era preciso. Na minha terra, Cascais, havia a biblioteca da casa Conde de Castro Guimarães. Para mim, foi durante dois ou três anos a biblioteca dos livros de Salgari. Ia lá na manhã do dia da semana em que não tinha aulas. Só podia requisitar três livros de cada vez. Os poucos leitores, deslizando silenciosamente entre as batidas solenes de um grande relógio dourado, iam buscar os livros às estantes de uma sala iluminada por uma única janela, rasgada ao fundo no paredão sobre a praia de Santa Marta. Ouvia-se o marulhar simpático do mar. Os livros tinham, sobre as capas originais, uma encadernação dura de cartolina vermelha ou verde. Encostava-me à estante folheando ora um, ora outro, hesitando na escolha, hesitando sobre para onde ir: se para junto de Sandokan, o “Tigre da Malásia”, e os seus corsários em luta contra os ingleses nos arquipélagos do sudeste asiático do século XIX; se para as Caraíbas com o “Corsário Negro”, a sua filha e os bandos de piratas que se batiam contra os espanhóis e os ingleses; se para o Brasil dos Tupis que disputavam a floresta aos colonos portugueses; se para a ilha de Madagáscar com os seus escravos revoltados; se para os “casbahs” de areia ardente dos salteadores do deserto do Saará.
Na contra-capa de “O Leão de Damasco”, nº 26 da Colecção Salgari (”Capitan Tempesta” no original italiano), um altivo castelo de tinta da china sobre azul erguia-se contra a lua e o mar. Ao olhar para o desenho e ao ler a palavra Damasco, ao pensar naquilo que aprendia nas aulas da história e geografia no Liceu de Oeiras e nos outros livros que por vezes requisitava por entre os Salgaris, quase sentia o ranger do cordame dos navios turcos do Mediterrâneo e o som da brisa nas palmeiras do deserto.
Entrei na adolescência e abandonei Emílio Salgari em favor de livros sem espadas e sem mosquetes, sem abordagens e selvas húmidas, sem animais de nomes estranhos e heróis de olhos em brasa, sem mulheres combativas e noites de tempestade. Depois reparei que todos tinham feito o mesmo: dos meus colegas e amigos, já ninguém lia Salgari, embora muitos - muitíssimos - mantivessem em casa, e num luminoso canto do coração, os livros da Romano Torres. Pior: reparámos que tão pouco os miúdos liam Salgari. No início da década de 1970, Emílio Salgari morreu. Em Portugal e por toda a parte.
Ressuscitou precisamente - e precariamente - em 1976 por via da televisão, do realizador italiano Sergio Sollima, do actor indiano Kabir Bedi. Foi uma série de dois episódios, de produção franco-italiana, intitulada “Sandokan”. Kebir Bedi encarnou o “Tigre da Malásia”. À série seguiram-se filmes, livros de banda desenhada, cromos, uma segunda vida para os velhos romances, agora na era da televisão. Parece que foi há trinta anos. E foi. Trinta anos que equivalem a trinta séculos de distância cultural. Com excepção dos cromos, que continuam a ser coleccionados e trocados, o “revival” Salgariano desvaneceu-se meia dúzia de anos depois, tão depressa como tinha surgido.
Os livros de Salgari não “pegaram” no nosso tempo, nem sequer com a série televisiva e o que se lhe seguiu, porque os seus livros assentam sobre os três pilares do ensino moderno burguês consolidado no século XIX: a história, a geografia, as ciências naturais, e hoje a divulgação e o ensino destas áreas do saber já não tem nada que ver com os livros, e menos ainda com a novela ou o romance que já não servem a informação ou a formação, mas o entretenimento. É um pouco por isso que as aventuras dos livros de aventuras se passam agora em sítio incerto ou lendário, em cronologia errática, em cenário minuciosamente artificial. A verificação não se faz noutros livros, faz-se nos outros produtos da indústria do entretenimento sem a constelação dos quais os livros não sobrevivem: os materiais feitos para a Internet e os brinquedos.
É provável que continue a haver muitos miúdos que lêem histórias, mas fazem-no não para saberem coisas ou para conhecerem esses “países estrangeiros” que são o passado, os outros… e os países estrangeiros. Fazem-no para se divertirem. Os livros de Salgari como, em geral, a novela e o romance, pertencem à cultura do livro que agoniza na arena pública há 50 anos perante o pasmo, a incompreensão, o desconforto e o ressentimento de educadores e intelectuais que não conseguem aceitar que tal cultura esteja a ser confinada rapidamente a uma elite, enquanto outras “coisas”, outras culturas, de perfil ainda pouco claro, tomam conta dos media, da esmagadora maioria das universidades, do espaço público.
É provável que qualquer miúdo saiba hoje o que é um “pecari” através de um canal como o National Geographic ou de uma simples pesquisa na Internet. Eu aprendi a páginas não-sei-das-quantas do “Corsário Negro” ou do “Corsário Vermelho” de Emílio Salgari. O “pecari” é um mamífero parecido com um pequeno javali que existe essencialmente na América do Sul e Central e cujos hábitos e aspecto Salgari descreveu entusiasticamente, a partir de enciclopédias e livros de viagens, como descrevia as plantas e a fauna “exóticas” de toda a parte.
Muitos anos depois de ter sepultado os seus livros no canto da memória onde também estão as batidas solenes do relógio dourado e a luz do sol da manhã sobre a praia de Santa Marta para lá da janela da biblioteca, lembrei-me muitas vezes de Salgari quando passei a ter a incrível sorte - que todos os dias agradeço aos deuses - de poder ir a alguns sítios onde nem toda a gente vai, não em turismo mas para ver o que se lá passa ou passou. Alguns desses sítios tinham já sido visitados por mim pela mão de Emílio Salgari e como ele os visitou: através da imaginação e da leitura. Foi assim ao olhar, no litoral do Brasil, para um manguezal, as árvores que mudam de raízes de modo a poderem deslocar-se, e que o escritor italiano descreveu como “árvores que andam”. Ou quando vi na Índia a minha primeira grande árvore “banian” cujo nome, como recordou Umberto Eco, aprendemos todos com Salgari. Senti-me o Visconde de La Hussiére do “Leão de Damasco” quando, na floresta de Ceilão, sacudi das pernas as sanguessugas que se preparavam para se alimentar de mim. A vida imitava a literatura. Era o que costumava fazer antigamente.
O cinema, essencialmente italiano, apoderou-se dos livros de Emílio Salgari desde o tempo do mudo no início do século XIX. Nas décadas de 1940 e 1950 fizeram-se filmes de argumento Salgariano no México e em produções italo-francesas. Nunca adiantou nem atrasou grande coisa. Emílio Salgari era para ler e foi através da leitura que chegou a toda a parte.
A toda não. Houve um canto do mundo dito ocidental no qual os romances Salgarianos só começaram a ser conhecidos no ano de 2003: trata-se de um canto importante, o mundo anglo-saxónico. É incrível mas é verdade. A primeira tradução para inglês de livros de Emílio Salgari ocorreu há quatro anos apenas! Tratou-se de “The Tigers of Mompracem” e “The Pirates of Malaysia” publicados por uma editora norte-americana.
Não sou muito de teorias da conspiração. Mas sou bastante de teorias do poder (às vezes é a mesma coisa). Penso que, durante todo o século XX, os editores ingleses fizeram deliberadamente de conta que Emílio Salgari não existia e contagiaram com esse silêncio os “primos” de além-Atlântico. A hostilidade britânica há-de dever-se a várias razões: talvez a snobeira de quem pensa ter melhores romances de aventuras, (com muita razão, acrescente-se); provavelmente o facto de o “mal” aparecer frequentemente identificado, nos livros de Emílio Salgari, com o império britânico. Os leitores Salgarianos não esquecerão nunca o arqui-inimigo de Sandokan, o infame “Rajah branco” da Malásia James Brooke, senhor de Sarawak, os opressores britânicos da Índia ou os governadores ingleses da Jamaica, personificação da maldade imperialista.
A última ressurreição de Emílio Salgari, que está a ocorrer nos nossos dias por “sites” da Internet e congressos académicos (e coincide - embora não por coincidência - com a sua penetração no mercado livreiro norte-americano), deriva do facto de o romancista ter sido “descoberto” como um autor anti-imperialista e anti-colonialista pela cultura pós-colonial dos círculos políticos e universitários da Europa e da América Latina.
Ou melhor: redescoberto. De facto, Emílio Salgari foi admirado entusiasticamente por personagens e autores como Che Guevara, Isabel Allende, Pablo Neruda e Gabriel Garcia Marquez. O Che, por exemplo, terá colhido dos romances do italiano alguma da inspiração para as viagens da sua juventude aventurosa. O anti-imperialismo da sua vida militante ter-se-á inspirado em personagens Salgarianos como o bengali Tremal Naik, o marata Kammamuri, o escravo negro Maiunga, que, entre muitos indianos, africanos, índios, imaginados por Salgari, demonstram uma singular ausência de racismo e um ponto de vista surpreendentemente cosmopolita. É muito grande o contraste entre os heróis de Salgari e os brancos de nariz levantado dos romances de outro grande contador de histórias de aventuras, o britânico Rider Haggard (1856-1925), autor de “As minas de Salomão” de 1885, livro que Eça de Queirós adaptou em 1891, um escritor muito estimado nos “clubs” de súbditos Sua Majestade britânica no século da rainha Vitória.
Em 2003, no início da recuperação pós-colonial de Emílio Salgari, podia ler-se no “site” da Biblioteca Nacional de Lisboa a propósito da Exposição “200 anos do romance de aventuras em Portugal”, que há um “fundo libertário na visão Salgariana de um mundo então eurocêntrico, racista e imperialista”.
Esqueceram-se do “sexista”. Uma pesquisa muito sumária na Internet com um ou dois motores de busca mais conhecidos chegará para demonstrar que os “women studies” ainda não descobriram Salgari. Mas não deve tardar porque abundam na galáxia Salgariana as estrelas femininas que não se limitaram a desempenhar o papel que o século XIX e o século XX burgueses lhes destinavam: o de vítimas ou de amantes. Há heroínas para vários gostos e há muitos romances centrados em personagens femininos de espada ou pistola na mão.
E também há portugueses, colocados por Salgari não do lado dos “europeus”, dos “racistas” e “imperialistas” mas, pelo contrário, do lado dos indianos, dos malaios, dos africanos, dos índios, dos piratas. Desde logo, é português o braço direito de Sandokan, o herói maior de Salgari: Yanez de Gomera (é verdade que é um nome castelhano mas não se pode ter tudo). Há portugueses no arquipélago malaio, nas florestas da Índia, no Mediterrâneo turco e veneziano, nas Caraíbas. São uma espécie de expatriados românticos. Poucos escritores não-portugueses terão tratado tão bem os portugueses.
Na época em que eu lia os livros de Emílio Salgari uns atrás dos outros como se a biblioteca do Conde de Castro Guimarães estivesse para desaparecer nos próximos dias, o meu avô mandava-me fechar o livro e apagar a luz relativamente cedo. À mesma hora, em milhares e milhares de casas, por toda a Europa, e, algumas horas mais tarde, por toda a América do Sul, milhares e milhares de rapazes e muitas raparigas fechavam os romances de Emílio Salgari e adormeciam nos mares do sul, nos refúgios dos piratas, nas areias do Saará, no vale do Ganges. Acho que adormecíamos todos e todas a sorrir: a Terra e a História eram nossas.

Autobiografia sumária

O artigo de Vasco Pulido Valente no último sábado dá ocasião para mais uma polémica na blogosfera sobre a pessoa do seu autor. Ele tem muita «coragem», para falar assim desassombradamente do que lhe aconteceu? Ou tudo isto não passa de um estafado recurso literário, usado por uma personagem vaidosa e egocêntrica? As intenções são pouco importantes. O texto está certo linha por linha, e sobretudo nas últimas.

Histórias

Vasco Pulido Valente
Público, 21.04.2007

No dia em que nasci, 21 de Novembro de 1941, Hitler ocupava quase toda a Europa e o exército alemão estava a alguns quilómetros de Moscovo. Franco tinha liquidado a República e Salazar mandava em Portugal. Ainda me lembro, distintamente, de ouvir a voz do Führer (ou de Goebbels?) na telefonia e das senhas de racionamento. Quando cresci, a guerra continuava viva na pobreza geral, nos livros, nos jornais, nas conversas da família. Sou, em primeiro lugar, um filho desse tempo. Do tempo dos julgamentos de Nuremberga, de Londres bombardeada (que cheguei a ver) e das revelações (de resto, vagas) sobre os campos de extermínio. Mas também o tempo do “existencialismo”, dos caveaux de Saint-Germain e do new look de Dior, que não deixou de aparecer numa Lisboa estupefacta e remota.
Nunca perdi a memória ou os sinais desse princípio, que foi, por assim dizer, a minha introdução ao mundo. A guerra fria veio complicar as coisas. Em Portugal, a existência da ditadura impunha, na prática, a escolha de um único lado. Não se podia ser contra os comunistas pela razão primitiva e óbvia de que o regime perseguia e prendia os comunistas. Não houve ninguém, ou quase ninguém, com um resto de consciência moral, que, numa altura ou noutra, não caísse neste buraco: o buraco sem fundo do “antifascismo”. Sair dele era mais difícil e muitos só saíram muito depois do 25 de Abril.
Por mim, gastei esforçadamente uma dúzia de anos no trabalho inglório de varrer a tralha política e teórica da minha cabeça. É uma parte da minha vida que se estragou e que não volta. Sou um filho da guerra fria.

A democracia portuguesa trouxe uma exagerada esperança de reforma e decência. Ao começo, mesmo a seguir ao PREC, nada parecia impedir que se fizesse um país, sem a miséria, a corrupção e a complacência do costume. Por isto e por aquilo, não se fez. Portugal conservou os seus velhos vícios, sem adquirir novas virtudes. Na minha última encarnação sou, prosaicamente, um filho da democracia falhada. Como escreveu o homem, a velhice é um naufrágio. Comigo, um naufrágio que às vezes não acho exclusivamente pessoal. Mas são com certeza momentos de megalomania. A verdade é que já não pertenço a esta história. O meu interesse é forçado, a minha presença é, pelo menos para mim, gratuita. Mas, por enquanto, não há remédio senão persistir.

quinta-feira, abril 19, 2007

Gostar de personagens


Procurei fotografias para ilustrar este post sobre um filme turco que está em cartaz, mas, por alguma razão, nenhuma me parece fazer-lhe justiça. Climas, de Nuri Bilge Ceylan, é um filme quase mudo, ou pelo menos as palavras não exprimem o mais importante nos diálogos do filme. Talvez este excerto - mesmo sem legendas e por não ter legendas - sirva para ficar com uma ideia. Nuri Bilge Ceylan, além de realizador, é argumentista, director de fotografia e protagonista; e é ainda, na vida «real», casado com a actriz que no filme faz de sua namorada, de quem ele se separa.

Um olhar pelas críticas reunidas no rotten tomatoes diz-nos coisas interessantes. Em primeiro lugar, a generalidade dos críticos só tem adjectivos duros para caracterizar o protagonista, Isa: é cínico, é sádico, é um falhado, um manipulador frio, um indivíduo sem carácter. Isto é pelo menos curioso, se se reparar no facto de que Isa é representado pelo autor do filme, e que há mais de uma coincidência biográfica entre os dois. Outra coisa interessante é que se nota que quem gostou das personagens (quer dizer: gostou delas, como quem gosta de pessoas concretas) gostou do filme; e quem não gostou das personagens não gostou do filme. Um crítico diz mesmo que o principal problema é que o espectador não pode criar empatia com aquelas personagens, e por isso não se interessa nem deseja que elas se entendam, que a história de amor «dê certo». Pelo contrário: há tempo que eu não torcia tanto para que uma história de amor desse certo. Extraordinários actores e fotografia. Gostei muito do filme.

Sugiro esta crítica.

(…) I love the way Ceylan refuses to ennoble Isa, just as I love the way Ceylan uses the familiar notion of a character regarding herself or himself in a mirror, to such different ends. (…) The way Ceylan’s camera holds steady on his actress-wife’s face, as it undergoes a series of fleeting climate shifts, you’re getting what you get in a great Chekhov tale: an entire life story in a glance. (…)

Ou esta.

(…) In about 15 brilliant minutes, the director conjures shifting perspectives and an unstable interplay between states of mind: sadness, affection, fear, revulsion, contempt, acceptance, remorse. These are microclimates. (…) Climates is Ceylan’s second superb, occasionally comic , relationship movie. (…) Ceylan composes a visual syntax to convey isolation and its temporary dissolution. His m.o. [mode of operation] is stillness. (…)

Kassin +2

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O melhor é começar por abrir este link numa nova janela, para ir ouvindo a música enquanto lê este post. O que deve estar a tocar é a música «O seu lugar» (se não está, ou não está essa, é preciso ir lá e corrigir), que convém ouvir até ao momento em que ele diz «vai custar cara essa palhaçada». Isto é o novo disco de Kassin +2, que por estes dias é posto à venda na Europa; no Brasil terá sido lançado há um par de meses, e no Japão no ano passado. (Estão a ouvi-lo? Isto é bom.) Kassin +2 é a banda de Alexandre Kassin, Domenico Lancelloti e Moreno Veloso, que no disco anterior se chamavam Domenico +2, e no anterior Moreno +2. (Parece que no próximo se chamarão simplesmente +2). É uma banda de cariocas, pós-bossa-nova. O concerto deles, em 2005, no antigo Cinema Roma, para uma pequena plateia de indefectíveis, foi uma curtição. Têm agora espectáculos marcados para dia 4 de Maio, sexta-feira, em Lisboa, no Santiago Alquimista; e na Casa da Música, do Porto, no dia seguinte. Pedaços da experiência do show podem ser descritos assim:

«A Moreno, tradicionalmente despenteado e com uma camisa da seleção mexicana de futebol, coube a tarefa de fazer as honras da casa com um surreal mas quase imperceptível “bom dia” (eram oito e quinze da noite). Com violão e voz de inspiração joãogilbertiana (e caetânica, por tabela), ele puxou uma releitura de Deusa do Amor, sucesso do Olodum, que faz parte do recém-lançado disco de estréia da banda, Máquina de Escrever Música. Alexandre Kassin tocou seu baixo eletroacústico de simplicidade aterradora e Domenico Lancelotti marcou o ritmo com duas lixas – impávidos ambos. (…) Também calma foi a versão voz-e-violão para Eu Sou Melhor Que Você, divertida canção do Mulheres Q Dizem Sim, banda original de Domenico (que, sem nada para tocar nessa, coçou a barba).»

Alexandre Kassin é um gordão de óculos, cara inexpressiva, barriga e mamas. Parece um nerd saído de um filme americano de série B sobre tropelias no liceu.

quinta-feira, abril 12, 2007

À maneira

A Vida dos Outros, filme alemão sobre a polícia política da antiga RDA, recebeu aclamação do público e da crítica, ganhando o Óscar de melhor filme estrangeiro em detrimento de Água, da indiana Deepa Mehta.

Mas eu ainda espero um filme sobre a Stasi à maneira de Bollywood.

Viena 1900

«O leitor começa a ver um filme, como Carta de uma Desconhecida, e sente o poder fáustico (melhor seria dizer aqui mefistofélico) do cinema: o modo como uma mão experiente e requintadamente enluvada, neste caso a de Max Ophüls, vai instilando um narcótico subtil no seu cérebro, que o infiltra e invade pouco a pouco, até que, sem saber como, vai encontrar-se submerso na Viena de 1900, numa época que não é a que lhe cabe viver, e com uma protagonista (Joan Fontaine) que não é você, claro está. No entanto, essas duas horas de cinema passarão a fazer parte da sua experiência de maneira indelével; e essa experiência, assim enriquecida, vai senti-la depois no seu mundo quotidiano, perante os assuntos práticos com que se depara (…).» [Juan Antonio Rivera, O que Sócrates diria a Woody Allen - cinema e filosofia, Coimbra: Tenacitas, 2006, p.317.]

Na Cinemateca Francesa está uma exposição que parte da seguinte premissa: pede-se a dez fotógrafos que mostrem como a memória visual do cinema se imprimiu, consciente ou inconscientemente, nas suas cabeças e se traduziu na forma como depois eles fotografaram. Os resultados são variados. O que me impressionou mais foi um autor (não retenho o nome), que comparou fotos recentes tiradas em Xangai com cinema dessa cidade nos anos 1930, que tinha visto há duas décadas. A exposição emparelhava lado a lado as fotos e excertos dos filmes, os personagens pareciam sair de um para entrar nas outras. Mas o que me impressionou mais ainda foi Elephant, que eu não sabia ser um filme de Alan Clarke, de 1989, sobre a Irlanda do Norte, antes de ser um filme de Gus Van Sant, com a mesma ideia e os mesmos movimentos de câmara, sobre o massacre de Columbine nos Estados Unidos.

O leque de Lady Windermere

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Sempre acabo a perguntar-me se não prefiro o cinema mudo

Nada, a não ser o puro preconceito ideológico (e o provincianismo: há também o provincianismo), explica o desinteresse por all things French que por cá se pratica. Há dez anos que não ia a Paris, mas numa coisa não mudei: continuo a preferir Paris a Londres, é mais bonita, mais agradável de andar pelas ruas e tem mais cinemas. Vi coisas muito lindas por estes dias. Mas, mais linda entre as lindas, foi a adaptação ao cinema (mudo) de O Leque de Lady Windermere por Lubitsch, de 1925, que faria Mr. A., Ph.D. extremamente feliz.

quinta-feira, abril 05, 2007

Poeira

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Esta foto dá uma ideia do filme

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E esta dá uma ideia da cor

Fiquei com sentimentos contraditórios sobre As Cartas de Iwo Jima quando revi. O filme tem o que me parece ser um verdadeiro achado: o cinzento acastanhado, ou castanho de poeira muito suja, que dá o tom a todo o filme. O fogo da aviação americana contrasta fortemente nessa espécie de cor de sépia; e as dezenas de navios de que está pejado o mar cinzento, no ataque à ilha, fazem pensar na invasão de uma espécie animal. Graças a isso, parece-me que Clint Eastwood mostra a guerra como ainda ninguém a tinha filmado antes. Eastwood joga com os efeitos de cor: às vezes há uma nesga de céu bem azul por sobre a ilha cinzenta, no final o horizonte é avermelhado. Mas também lhe foge a mão, como quando o sangue espirra vermelho vivo do soldado que se faz rebentar com uma granada, por sobre a foto cinzenta da família que ele guardava na outra mão. A mensagem emocional que se pretende transmitir com isto peca por – digamos – excessivamente evidente.

Aquilo a que eu não consigo aderir é precisamente a esta sentimentalização excessiva. Os flashbacks são todos pavorosos todos, acho que sem excepção. As cenas de pendor sentimental são sempre introduzidas por uma musiquinha irritante, composta por Kyle Eastwood (filho do realizador) e Michael Stevens. Os heróis japoneses (o general e o cavaleiro) são ambos pró-americanos: aparecem em cenas ridículas a falar inglês; as suas recordações da América surgem nuns flashbacks delicodoces que achei dolorosos; e prestam homenagem à América, onde ambos viveram. Às vezes pergunto-me se o defeito é meu, mas o que é facto é que as cenas que revelam a crueldade humana (por exemplo, a corajosa cena em que Eastwood mostra dois soldados americanos a matarem a sangue-frio prisioneiros de guerra) são quase sempre muito mais persuasivas do que as cenas «do bem», aquelas onde se mostra a bondade comum do ser humano. É certo que o texto de algumas cartas (as cartas japonesas e a carta do soldado americano que morre) é tocante, mas também é certo que Eastwood não resiste à tentação de sublinhar, de enfatizar, de tornar tudo demasiado patético e redundante.

O filme é longo demais, mas a segunda metade é melhor do que a primeira.

Todas as cenas de 1945 são melhores do que as que remetem para antes ou depois da batalha. (Aliás, Clint Eastwood tem a seu crédito os cinco minutos mais lamentáveis inseridos num filme de resto excelente, que é o flashforward final de As Pontes de Madison County.)

Dito isto, será com certeza um dos melhores filmes que vejo em estreia este ano. (Para ter uma ideia da música e da cor, o site é útil.)

Oh, well. Depois de escrever isto, descubro que o mesmo (e mais) já estava dito neste texto do Independent. Letters From Iwo Jima doesn’t have much to say except that Japanese are human beings, too.