Yes, there were times, I’m sure you knew,
When I bit off more than I could chew.
But through it all, when there was doubt,
I ate it up, and spit it out.
I faced it all, and I stood tall,
and did it my way.
Li, com gosto, o livro que Filipe Santos Costa acaba de publicar sobre a última campanha eleitoral de Mário Soares para a Presidência da República. O livro é uma crónica detalhada, inteligentemente construída, dos vários passos que levaram Soares desde a decisão de se candidatar até à derrota de 22 de Janeiro. Li com curiosidade todas as partes que não conhecia por não ter estado envolvido – designadamente, as circunstâncias que conduziram à decisão de avançar – e li também com interesse as partes que conhecia e em que estive envolvido. Idealmente, para fazer uma crónica da decisão de avançar, teria sido interessante obter mais informação sobre as outras candidaturas, sobre a forma como as movimentações de Soares foram sendo recebidas naqueles meses de Julho e Agosto – por Alegre, evidentemente, mas também por Cavaco, e até por Jerónimo e Louçã, já que a questão da «unidade da esquerda» assumiu um significado tão relevante.
Filipe Santos Costa falou com Alfredo Barroso, Mega Ferreira, Marcos Perestrello, António Manuel, António Campos, José Manuel dos Santos, entre outros – ou seja, falou com quase todas as pessoas que acompanharam de perto o dia-a-dia da campanha. Falou com todos estes em on e, muito provavelmente, com a maioria deles também em off. É possível que ainda tenha falado com Vasco Pulido Valente (para a história de um almoço), ou pelo menos com Constança Cunha e Sá, que assina o prefácio. As fontes são boas e permitem-lhe reconstruir aspectos cruciais e desconhecidos da campanha com bastante minúcia.
Isto não significa, naturalmente, que não encontre defeitos no relato. O principal é que Filipe Santos Costa está notoriamente mais à vontade a falar de factos que investigou do que a caracterizar psicologicamente os personagens, ou a descrever «estados de alma». A meu ver, as páginas iniciais, que se debruçam sobre os dias da derrota (o sábado de reflexão e o domingo eleitoral) são talvez as mais fracas, porque há poucos factos para relatar, ou quase nenhuns, e muitas «disposições». Filipe Santos Costa não resiste aqui a uma certa tentação de omnisciência – dizer o que os intervenientes estavam a pensar e a sentir para lá daquilo que eles próprios expressaram – e não evita retratar situações de forma um pouco teatralizada, quando a realidade foi talvez um pouco mais rugosa e menos «literária».
Aliás, a questão «psicológica» talvez não seja de pequena monta, e aqui encontro o segundo problema importante do livro. Se pensarmos no plano histórico, é pouco provável que esta campanha de Mário Soares venha a ser vista como um acontecimento relevante; é no plano «psicológico», «humano», que uma candidatura destas, inesperada, «ilógica», oferece uma oportunidade de ouro para fazer um retrato do personagem. Ora, os talentos de Filipe Santos Costa estão notoriamente mais do lado da investigação jornalística (dos factos) e da sua articulação inteligente do que do lado da construção literária (do personagem). É certo que quem queira perceber como e porquê Soares perdeu esta eleição, encontrará no livro a resposta. Mas isso ainda deixa em aberto duas perguntas: Quem? E por quê, se a derrota parecia inevitável a quase todos desde o início? Fico a pensar que o talento de Filipe Santos Costa promete bastante para outros trabalhos de investigação (uma boa crónica do processo Casa Pia desde que rebentou o escândalo, por exemplo, parece-me muito necessária), mas que os detalhes da campanha falhada de Mário Soares só poderão interessar a poucos como eu. Talvez me engane.
De todas as formas, ainda que Filipe Santos Costa não invista (felizmente) o seu trabalho a tentar desenhar um perfil psicológico de Soares, alguma coisa emerge do relato. Tenho para mim que, na sua aparente simplicidade, ou talvez mesmo por causa da sua aparente simplicidade (dizer o que lhe apetece e fazer quase sempre o que quer), Soares é das personagens mais complexas que me foi dado conhecer. Indagações sobre o que motiva a sua acção, sobre o que pretende, são o mais das vezes fúteis e falíveis. Mas um retrato do que foi Soares nesta campanha, da combinação de uma certa inabilidade política com uma determinação, uma energia, uma obstinação extraordinárias, essa imagem emerge claramente deste livro. Sem que Filipe Santos Costa seja condescente, a sua admiração, o seu espanto, perante este personagem singular também transparece, nítida. E a imagem que resulta é, quer-me parecer, muito próxima daquela que eu próprio tinha ao finalizar a campanha. Foi na hora da derrota que Filipe Santos Costa viu os apoiantes da candidatura gritando mais empolgadamente «Soares é fixe» perante o seu candidato, num momento em que a circunstância propriamente política já estava em boa medida superada. Foi com o My Way que nós no Super Mário terminámos a campanha. Não deve ser por acaso.
[Filipe Santos Costa, 2006, A Última Campanha, ed. Palavra, Lisboa.]