quinta-feira, janeiro 04, 2007

Três notas sobre o enforcamento

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1.

Para mim, a imagem mais forte foi a do antigo ditador no cadafalso, cara descoberta, perante carrascos encapuçados que lhe apertavam a corda à volta do pescoço. Não tenho muita rotina de assistir a enforcamentos: não sei se o espectáculo foi normal dentro do género. Mas impressionou-me a imagem de um homem enfrentando três sujeitos que iam matá-lo de cara escondida. De que se escondiam os homens com os gorros pretos? Um acto de Direito pode ser praticado por sujeitos embuçados? Uma justiça que oculta a sua cara ainda é Justiça?
Foi talvez isto, mais do que as declarações do enfermeiro Ellis, mais do que o facto de ele enfrentar a morte em abstracto (ele não enfrentava A Morte: enfrentava os que o matavam), que humanizou Saddam no cadafalso. Tudo aquilo era fortemente evocativo de uma vingança privada, de um acto clandestino. As notícias posteriores confirmaram esta ideia. Não restam nenhumas dúvidas, a qualquer pessoa séria, de que o que se praticou foi o linchamento de Saddam Hussein.

2.

Terá sido, como se diz, um assassinato político? Ou o culminar de um processo judicial? Infelizmente, nem uma coisa nem outra. O problema do enforcamento de Saddam não é só ter sido um gesto político: é não ter sido suficientemente um gesto político. Explico-me. O assassinato como método político é sempre complicado; mas tem, por assim dizer, a sua dignidade enquanto raciocínio. Os que recorrem a essa prática argumentam geralmente que ela evita males maiores: por exemplo, que matam o cabecilha para desmoralizar a resistência e com isso poupar vidas. (Não vale a pena elaborar muito sobre a triste história do assassinato como método político, incluindo por parte de movimentos revolucionários e de esquerda. Onde pára uma morte, mesmo a que parece razoável num contexto particular? Quantas são ainda justificadas: dez, cem, cem mil? Onde acaba a boa intenção purificadora de fazer justiça e começa uma engrenagem que desemboca no assassinato em massa, na «limpeza», na «purificação política»?)
Mas, no caso de Saddam, longe de servir um objectivo político de pacificação, os efeitos do assassinato (ainda mais reforçados pelas circunstâncias: pelo video que apareceu, pelo dia escolhido) só podem agravar o conflito interétnico no Iraque. Como se justifica manter três anos em cativeiro um homem e, ao fim de três anos, ocupados com um simulacro de julgamento, matá-lo? Que objectivo político é que o seu enforcamento prosseguiu?
Os crimes de Saddam, deste ponto de vista, são irrelevantes. A vingança não repara os crimes. Os homens têm o direito de punir outros homens em função de efeitos sociais desejáveis (para o manter afastado, para o tornar inofensivo, para dar um exemplo à sociedade sobre o que pode e não pode ser feito), mas nenhuma dessas questões estava concebivelmente presente aqui. Por outro lado, um julgamento a-histórico sobre o bem e o mal, num plano definitivo, cabe a Deus, não aos homens. «Terá Hitler entrado no paraíso?», perguntava um dia numa crónica João Bénard da Costa (talvez, não me lembro, parafraseando alguém). E respondia: é possível. Esse tipo de julgamento sobre o bem e o mal num sentido absoluto não nos compete a nós, que somos todos iguais, igualmente relativos.
A execução de Saddam consistiu em dar a um grupo de pessoas o prazer de dispor da vida de um indivíduo. O som do cadafalso que se abre, da reza que se interrompe, do pescoço que se parte, dá-nos o momento em que eles decidiram que o animal-Saddam deixava de estar vivo. O barulho do pescoço de Saddam é o barulho do pescoço de qualquer homem.
Os americanos guardaram durante três anos o antigo ditador para o entregarem a esta cerimónia. A tentativa de os distanciar da responsabilidade por este acto – num país que eles ocuparam, numa guerra civil que eles criaram, apesar de todos os avisos – é outro simulacro.

3.

E no fim há também uma espécie de riso que se escuta em fundo, por esta farsa que chamaram de justiça, num processo em que só houve mentiras: o chefe de Estado deposto ao abrigo de uma guerra ilegal, que acaba enforcado em nome da Lei. Sem essa guerra ilegal, o antigo ditador poderia discursar hoje mesmo no palanque das Nações Unidas. Quando se fala em justiça neste enforcamento (quanto mais em democracia), a dissonância, a incoerência, salta à vista, como uma nota fora de tom. Um simulacro de justiça onde tudo foi injusto até aqui. Seria preciso ser muito estúpido, além de desinformado, para imaginar que com este enforcamento se realizou justiça. Como se estivessem a gozar com a nossa cara. Como se se estivessem a rir.