Capa da edição em inglês do livro de Ruy Castro, Carnaval no Fogo
Três anos atrás, eu estava no Rio. Na semana entre o Natal e o Ano Novo, as praias de Copacabana, Ipanema, Leblon são invadidas por números indescritíveis de pessoas. As praias cheiram mal. A água está tudo menos limpa. Na noite do réveillon, a população desce à praia em quantidades calculadas entre os dois e os três milhões de pessoas. Os hotéis e os navios aportados organizam um festival de fogo-de-artifício que dura uma meia-hora. Eu estava com os pés dentro da água do mar; uma garrafa vazia de espumante veio com as ondas e acertou-me na canela. Os cariocas (e os turistas) festejam a meia-noite na praia, levam a bebida, deitam as garrafas vazias no mar (junto com as flores a Iemanjá). No dia primeiro de Janeiro, saí à rua em Copacabana e não se conseguia andar, com o lixo, um bairro do tamanho de uma cidade média (ou mais) de Portugal inteiramente cheirando a urina. Tive de apanhar o autocarro e ir fazer tempo em Ipanema até à hora de apanhar o meu vôo. Não foi um bom réveillon.
Lembrei-me disto agora por – naturalmente – várias razões e porque entre os melhores livros estrangeiros publicados este ano em Portugal o Pedro Mexia colocou o do Ruy Castro sobre o Rio de Janeiro. Comprei-o lá, nesse mês de Dezembro de 2003, com sentimentos divididos (por não ter gostado de outros livros do Ruy Castro – mas os temas são sempre muito bons: a bossa-nova, Nelson Rodrigues, Carmen Miranda, Garrincha). A edição era bonitinha e ficou ali na estante até agora – até à lista de melhores de 2006 do DN da sexta-feira passada. Fui ler. O Ruy Castro nunca me decepciona. São duzentas e cinquenta páginas – pequeninas, é certo – das quais odiei praticamente cada linha. Não sorri uma única vez, não me fez pensar quase nada, não despertou curiosidade. Arrastei-o pesadamente ao longo de dois ou três dias – com um brevíssimo intervalo, quase no final: um conjunto de páginas sobre a história da bossa-nova (que o Castro conhece). O Castro não tem graça e faz piadas, o Castro não é historiador e abusa de um estilo que evoca o nosso José Hermano Saraiva: «Foi aqui…»
«Surpreendentemente, uma outra especialidade dos tupinambás, observada pelos visitantes, não conseguiu diminuir sua cotação em sociedade: o canibalismo. (…) No dia marcado para a execução, as aldeias vizinhas eram convocadas para a boca-livre e acorriam em hordas. Depois de muito canto e dança, os convidados sentavam-se no chão, formando um grande círculo. O prisioneiro era chamado ao centro do terreiro, tinha o seu corpo pintado e davam-lhe pedras e cacos de cerâmica para atirar em seus captores. Fazia também parte da regra que ele lhes dirigisse os piores xingamentos e jurasse que seus irmãos viriam vingá-lo. No auge do discurso, levava uma pancada com uma borduna que lhe esmigalhava o crânio, para deixar de ser besta, e morria en beauté, sob aplausos e pedidos de bis. (…) Pela quantidade de gente à mesa e a pouca fartura do prato, cada convidado conseguia comer, no máximo, um dedo do pé ou meia orelha.»
[Ruy Castro, 2003, Carnaval no Fogo – Crônica de uma cidade excitante demais, São Paulo: Companhia das Letras, pp.30-32.]
O Castro partilha do preconceito antiportuguês, que é das coisas mais palermas que se pode encontrar num brasileiro (e sabe Deus que eu sou o último dos patriotas e o primeiro dos brasilófilos). E o Castro tem uma moral e uma «agenda» para nos vender, segundo a qual o Rio realmente sofreu muito (criminalidade, atentados ao património, etc.), mas desde a década de noventa, desde realmente a véspera deste livro, tudo está finalmente a ir ao sítio graças ao esforço empenhado e desinteressado de cidadãos conscientes. Nas últimas páginas, o Castro quer até convencer-nos de que Copacabana, às oito da manhã do dia primeiro de Janeiro, é um espectáculo de limpeza, graças ao cuidado de três milhares de funcionários que apagam os vestígios da rambóia da noite.
Mas eu estive lá: Copacabana no dia primeiro de Janeiro e o livro do Ruy Castro têm um cheiro parecido.