quarta-feira, janeiro 24, 2007


Retrato de Tom Zé por Vera Tavares, do livro

[Esta nota sobre o recente livro de entrevistas de Carlos Vaz Marques a músicos brasileiros, MPB.pt (edições Tinta da China), saiu no Le Monde Diplomatique - edição portuguesa deste mês.]

Carlos Vaz Marques recolhe em livro um conjunto de entrevistas que fez com músicos brasileiros para o programa de rádio «Pessoal e… Transmissível». Não é perfeitamente claro que haja nestas entrevistas uma identidade de estilo: algumas são biográficas, outras quase «doutrinárias»; algumas apresentações de músicos, outras conversas com interlocutores desde há muito conhecidos. Apesar do título (MPB.pt), é até duvidoso que a designação «música popular brasileira» ainda represente alguma coisa unificada, que inclua desde Hermeto Pascoal a Maria Rita, unidos pelo mero acaso de terem estado em Lisboa. As introduções feitas por Carlos Vaz Marques também seguem modelos díspares. Há entrevistas luminosas: Chico Buarque tem uma grande inteligência nas formulações, uma riqueza verdadeiramente literária na escolha das palavras. Há curiosas conversas de pendor biográfico com Edu Lobo ou Lenine; a inteligência, embora um pouco lacónica, de Marisa Monte; ou a criatividade torrencial de Tom Zé. Também há entrevistas quase sem assunto (que há para conversar com Maria Rita, se não é de muito bom tom falar apenas da mãe?), ou desagradáveis por demasiado narcísicas (Ney Matogrosso ou Caetano Veloso, todo o tempo dizendo «eu sou assim e assado», «eu acho-me isto e aquilo»).
A riqueza do livro está escondida no cd de cerca de uma hora que o acompanha, colado na última página, com fragmentos gravados das entrevistas. Aí, o que parecia um excesso «doutrinário» de Hermeto Pascoal (um discurso filosófico que às vezes faz lembrar o de Agostinho da Silva) resulta irónico, humorado, divertido. Uma entrevista com Chico César que quase não existe no papel transfigura-se no som, à medida que ele ilustra musicalmente o seu discurso e a sua história de vida. Vanessa da Mata ganha outro encanto quando se ouve o seu riso; e também Maria Rita resulta mais interessante. E é no disco que a perícia de montador de Carlos Vaz Marques vem ao de cima, fazendo coisas em áudio que o texto não permite, pondo os músicos a «dialogar» uns com os outros, criando sequências temáticas, explorando ironias.
Ao ouvir o disco, a própria unidade temática resulta plausível, porque se ganha uma noção da diversidade das raízes – em grande medida populares – musicais do Brasil. Isso é patente em Hermeto, Tom Zé, Chico César e, de uma outra maneira, em Edu Lobo, Chico Buarque, Egberto Gismonti. Na verdade, este livro é um disco, e não tem por que ser um livro. Talvez convenções de ordem comercial o justifiquem. Mas é no formato áudio que ganha riqueza de documento e testemunho.