sexta-feira, julho 06, 2007

Nem tudo é doce no maquiavelismo

[publicado no Monde Diplomatique – edição portuguesa, de Julho.]

Álvaro Cunhal e a dissidência da terceira via

Raimundo Narciso

Ed. Âmbar, Porto, 2007, 197 pp.

Quase duas décadas passadas, Raimundo Narciso conta a história do grupo que dissidiu do PCP em 1988-1991: é essa a «terceira via» a que o título se refere – confusamente, uma vez que, a partir de meados da década de noventa, Tony Blair popularizou a mesma designação num sentido totalmente distinto. O livro acrescenta alguma coisa do ponto de vista do detalhe histórico: a passagem mais viva é aquela em que Raimundo Narciso se descobre perseguido por espiões do próprio partido, numa noite de 1988, enquanto se dirigia a uma reunião «fraccionista». No que o livro é manifestamente insatisfatório é no plano da reflexão política. Por um lado (tal como o próprio grupo), apresenta a dissidência como tendo motivações «procedimentais» (falta de democracia interna, etc); mas, enquanto esteve de acordo com a linha política, Narciso (como ele próprio, honestamente, anota) nunca se incomodou com os procedimentos. Já quanto às razões políticas de fundo, elas são apresentadas sob a forma de uma desadequação da linha do partido à «realidade», evidência demonstrada na incompatibilidade com a «perestroika» (que dominava a URSS neste período, e até à sua extinção) e pela incapacidade do PCP, em Portugal, para influenciar directamente a esfera do poder político.
Sobre a cabeça dos militantes então «críticos» (depois dissidentes) pairava a acusação de aproximação ao PS – acusação que, no universo do PCP, se reveste de conotações que chegam a ser mais morais que políticas. O fantasma ainda paira sobre o livro, até porque Raimundo Narciso e outros (Pina Moura, Mário Lino, José Luís Judas, o falecido Barros Moura) efectivamente aderiram ao PS ao longo dos anos seguintes. Mas a resposta de Narciso é hoje a que era naquele tempo: que se trata de um processo de intenções, que o projecto não existia, etc. Em certa medida, tudo continua a colocar-se em termos de intenção, de dolo, de culpa. O que escapa ao seu discurso (como já então escapava) é saber que projecto político tinham os «críticos» que não fosse – rigorosamente – o mesmo que o PS já prosseguia. Que linha política propunham para o PCP que não fosse a adesão ao PS? Sobre esta questão o texto é omisso; e, se ela se punha na época, a passagem do tempo não fez senão reforçá-la. O que queriam os «críticos»? O que queria, ao menos, Raimundo Narciso?

Salva-se do livro a honestidade (às vezes, impressionante) do testemunho, o depoimento sobre a experiência da ruptura após uma vida de sacrifício pessoal (sacrifício que, com assinalável modéstia, Narciso nunca enfatiza), a documentação de alguns episódios e o sentido de humor.

«A análise da situação política trouxe as novidades do costume. A situação da economia piorou, a vida dos trabalhadores agravou-se, o isolamento do Governo cresceu e as análises políticas de Cunhal, ou do partido, confirmavam-se inteiramente como se ‘previra e prevenira’. Salvo nuances e as circunstâncias de cada momento a análise era esta desde que o PCP deixou de participar no Governo em 1976 e estava ‘correctíssima’. A situação económica do país, de acordo com as análises de Cunhal e Carlos Costa, baseadas no trabalho da Comissão de Actividades Económicas que Carlos Carvalhas condimentava ao gosto do sexto andar [direcção] antes de lhas transmitir, piorava sempre, sempre, dia após dia, mês após mês, ano após ano, sem intervalo, nem fôlego. Abismávamo-nos com os abismos em que já estaria o país, felizmente sem que os Portugueses tivessem dado por isso.» [p.81]

Não se salva a qualidade da edição – mal revista, mal pontuada, com fotografias de péssima impressão, e isto num livro que traz vinte euros como preço de capa. Lido com atenção, transpira nele uma certa ambivalência de Raimundo Narciso sobre os métodos de Cunhal e do PCP, entre a rejeição e a simpatia por uma certa eficácia, um certo maquiavelismo. Hélas, na ausência de uma linha política, a eficácia é sempre o único critério que resta.