quinta-feira, março 29, 2007

É sempre tempo de fazer uma comédia

In this heady mix, Berlusconi is the MacGuffin.

O novo filme de Moretti é complicado. Possivelmente, complicado demais. Um produtor fracassado de filmes de série B (Silvio Orlando/ Bruno Bonomo) tenta desesperadamente voltar a trabalhar. Mas o filme que procura agora fazer – porque é o único que lhe foi parar às mãos – é um filme político sobre Berlusconi, cinema «sério», «intelectual», «engajado», o oposto do que ele sempre fez. Ao mesmo tempo, Bonomo tenta salvar um casamento naufragado, toda a vida familiar com os seus dois filhos. «Il Caimano» (o filme de Moretti) inclui fragmentos de anteriores «filmes» de Bonomo e fragmentos de três versões diferentes do «filme» sobre Berlusconi. Acresce que a estética de série B dos filmes anteriores não tem nada que ver com a estética dos filmes de Moretti, pelo que a confusão narrativa também é confusão visual – e «Il Caimano» entra, por assim dizer, logo por uma cena de um destes filmes de série B.

É verdade que é confuso. O que é difícil imaginar é que «Il Caimano» seja um filme sobre Berlusconi – ou sobre «a Itália contemporânea», como alguns críticos procuraram atalhar, dizendo a mesma coisa de uma maneira ínvia (como se diz no filme, «a Itália contemporânea é Berlusconi»). Podia ser, quando muito, um filme sobre as tentativas para fazer um filme sobre Berlusconi e sobre as razões – expostas no próprio filme por uma personagem encarnada por Moretti – pelas quais não se pode fazer um filme sobre Berlusconi. Outros críticos tentaram decifrar a confusão esclarecendo que se trata de duas narrativas paralelas, dois filmes: um filme «familiar», a história do naufrágio do casamento do Bonomo, e um filme político - e, nessa circunstância, os ditos críticos preferiram, invariavelmente, a história familiar. Desagradou-lhes em especial a última cena do filme, por «política» e apocalíptica.

Parece-me que nem uns nem outros têm razão: nem são duas histórias separadas, nem a cena familiar é alguma espécie de metáfora da dimensão política. Aquilo que eu vejo no filme de Moretti - isto é, aquilo que eu vejo como sendo a ideia central do filme de Moretti - é a dificuldade, ou impossibilidade, de destrinçar a dimensão pessoal e a dimensão política, embora elas sejam, no plano lógico, duas coisas perfeitamente separadas. Mas o mal-estar que Moretti sente perante Berlusconi é puramente político, ou tem que ver com um sentimento de inadequação pessoal à Itália contemporânea? E o naufrágio individual, a depressão, a tristeza, é estritamente individual, ou social, geracional e política?

Estes temas, de resto, não são novos em Moretti. Aprile era o filme do nascimento do filho, e era também um filme assombrado por Berlusconi, o filme de

D’Alema, diz alguma coisa de esquerda!… Diz alguma coisa mesmo que não seja de esquerda, alguma coisa de cívico! D’Alema, diz uma coisa, diz qualquer coisa! Reage!

Palombella Rossa, o filme do fim do comunismo, passado num jogo de pólo aquático, não era apenas um filme sobre o fim do comunismo, mas um filme sobre Moretti no fim do comunismo e do PCI. Il Caimano é mais sombrio, mais deprimente, mais deprimido, de final apocalíptico - nada que quem conheça gente de esquerda mais ou menos da geração de Moretti não tenha notado: a desilusão, a um tempo pessoal e política. Enquanto foi sonho, foi fantasia pessoal e política; enquanto frustração, também o é.

O que não impede que Moretti continue a encontrar no cinema uma compensação para isso, que o filme - mesmo deprimente, mesmo apocalíptico - não seja uma certa forma de se reconciliar com as coisas. Gostar muito de cinema traduz sempre uma relação conflitual com a realidade exterior? Por isso mesmo é que «quem gosta da vida vai ao cinema», como dizia há muito tempo João Mário Grilo?

[Apesar da confusão, e de talvez ligeiramente longo demais, Moretti ****].