quinta-feira, outubro 19, 2006

A derrocada


Vendo Portugal à distância de uns milhares de quilómetros - que é, às vezes, a distância a que deve ser visto - a única notícia significativa que se registou aqui no último mês de Agosto consistiu numa pequenina notinha de rodapé acrescentada pela direcção do Público a um artigo de opinião de Isabel do Carmo. Dizia assim:

«NR - O PÚBLICO não alterou a grafia deste texto, designadamente o facto da [sic] autora escrever Holocausto com caixa baixa.»

Esta nota de redacção suscitou uma enxurrada de críticas, e desde logo um comentário do abrupto altamente meritório. Mas o facto de a nota de redacção ter suscitado as reacções devidas não significa que o assunto se tenha esgotado, ou que as suas implicações ficassem por aí. Porque o que a notinha da direcção do Público constituiu foi um passo - um passo mais, um passo emblemático, um degrau apenas ligeiramente mais acima - num processo de apropriação do Público pelo seu director, em função de uma agenda ideológica altamente militante, um processo a que noutra ocasião já chamei de usurpação. Houve um dia, em Agosto, em que o director do Público imaginou que poderia desqualificar um artigo sobre Israel sugerindo, com uma pequena nota «semântica» de rodapé, uma mera correcção ortográfica, que a sua autora era «negacionista». E isto como se existisse alguma regra universal que recomendasse o uso de maiúscula em holocausto, como se o holocausto não fosse um acontecimento da História mas uma Entidade de contornos mais ou menos religiosos.
Uma notícia chegada agora, sem a magnitude, a singularidade, daquela pequena nota, vem no entanto complementá-la. O texto do Diário de Notícias da última sexta-feira que dá conta da ruptura entre Augusto M. Seabra e o Público tinha-me passado desapercebido - encontrei a referência aqui. A notícia da saída de Seabra do Público é em si mesma surpreendente e significativa para quem se tenha habituado a ler o Público desde o início: pelo peso que o crítico tinha no jornal, a quantidade de textos que escreveu, o trabalho, a informação que neles estava inscrita. A isto acresce, lateralmente, o facto de que AMS era talvez a única pessoa que, no próprio Público, ainda criticava abertamente a agenda ideológica do director, e sobretudo a subordinação do jornal a essa agenda.*
Mas - como se assinala muito justamente aqui - a notícia do DN sobre a saída de Seabra tem ainda um pormenor picaresco: o director do Público responde às críticas à orientação do jornal com observações pessoais e ataques de carácter. Isto é interessante. Também é interessante que, três meses atrás (em Julho, se não estou em erro), quando, num conjunto extenso de artigos sobre o lugar da crítica, AMS polemizou com Eduardo Prado Coelho, este lhe tenha respondido, nas páginas do jornal, com um ataque violento de carácter pessoal do género mais grosseiro e mais inaudito.
José Manuel Fernandes é director do jornal, e Eduardo Prado Coelho tem o estatuto singularíssimo de colunista diário, vai para dez anos ou coisa assim (com o aspecto cómico adicional de que, supostamente, representa a «esquerda»). Os dois juntos dão boa imagem do pior que o Público tem hoje para oferecer. Não conhecia a Seabra - que, segundo sei, não respondeu a qualquer destes ataques - vocação para Cristo. De qualquer forma, o que às vezes começo a perguntar-me é se ainda assistiremos à derrocada final deste jornal, que tinha nascido dentro das melhores expectativas.

* Um episódio que, por cómico, registei do ano passado foi o da capa do Público que anunciava em manchete «três eleições históricas» - na Alemanha, no Japão e outra que não me lembro (mas não: não era no Iraque). O carácter «histórico» das eleições consistia em que, na opinião do jornal, elas representavam a grande oportunidade para esses países se movimentarem em direcção a uma agenda económica mais liberal. Infelizmente, os eleitores desses países não estiveram à altura dos desígnios históricos que o director do Público lhes tinha atribuído, e produziram resultados eleitorais de compromisso, muito pouco «históricos».