domingo, fevereiro 17, 2008

Ensaios céticos



[Texto publicado anteontem no suplemento Ípsilon do Público.]


Sobre Eric Hobsbawm, Globalização, democracia e terrorismo, traduzido por Miguel Romeira para a ed. Presença.


Eric J. Hobsbawm é indiscutivelmente um dos maiores historiadores vivos e deve muito desse estatuto a uma tríade de obras de referência sobre o século XIX – Era das Revoluções (1789-1848), Era do Capital (1848-1875) e Era do Império (1875-1914). Já parcialmente retirado da vida académica, escreveu depois um volume sobre o século XX, que obteve também um reconhecimento enorme. Chamou-se Era dos Extremos (1914-1991), mas, apesar do título enganador, não era de forma nenhuma comparável aos livros anteriores: tratava-se agora de um comentário à história do século XX feito por quem o viveu (Hobsbawm nasceu em 1917, a outra data de início do seu «breve século»), reconstruindo-o através de documentos, anotações e memórias, no que elas têm também de fragmentário e selectivo.

Na própria página que abre Era dos Extremos está sublinhado que ninguém pode contar a história do seu tempo como a de séculos passados, e que Hobsbawm não é, nunca foi, um historiador do século XX, mas um especialista no século XIX. Por mais que na bizarra tradução portuguesa a Era dos Extremos tenha tido como subtítulo «breve história do século XX» (trata-se do «breve século XX», e são 600 páginas), o livro não é pois nenhuma síntese, mas uma interpretação do tempo da própria vida. E, quando mais tarde Hobsbawm publicou a sua autobiografia (Tempos Interessantes), fez questão de notar que se tratava do «reverso» de Era dos Extremos. O livro sobre o século XX podia também ser lido como memória, e a autobiografia como uma introdução ao século: foi o próprio Hobsbawm quem o sugeriu.

Se começo por falar de outros livros, e não da colectânea de ensaios que agora tenho em mãos, é que creio que este volume deve ser interpretado no quadro da autobiografia alargada que Hobsbawm tem vindo a escrever nos seus anos de senectude. Os temas que estruturam esta compilação são actuais: «Globalização, democracia e terrorismo» remete para os três grandes chavões do discurso político contemporâneo. Mas o olhar sobre eles é marcado pela experiência e pela nostalgia do século XX. Há um fio que vem de Era dos Extremos e se prolonga, o sentimento de perda de um mundo organizado pela Guerra Fria (um sistema internacional «estável», «ordeiro», «previsível»), uma nostalgia dos anos gloriosos de 1945-1975, em que, enfrentado pela alternativa comunista do Leste, o capitalismo se socializou.

Um dos pilares desta transformação é o declínio do Estado, hoje muitas vezes incapaz de controlar o que se passa no seu interior. A enorme disseminação de armamento ligeiro, que se iniciou com a Guerra Fria e prosseguiu desordenadamente depois do seu fim, é várias vezes mencionada como pondo em causa a ordem estadual. Outro pilar consiste no declínio da disponibilidade dos cidadãos para obedecer – quer no plano mais quotidiano da disposição para cumprir a lei, quer no sentido mais ambicioso, de dar a vida em defesa da pátria. A generalidade dos Estados deixou, segundo o autor, de poder contar com os seus cidadãos para este fim. O recrudescimento de massacres, limpezas étnicas e deslocações forçadas de populações numa escala nunca vista desde o final dos anos 1940 é outro tema recorrente, e que ilustra os inconvenientes trazidos pelo fim da Guerra Fria.

A estratégia do autor é a de encarar os fenómenos contemporâneos com olhos céticos informados pela história. Céticos num duplo sentido: porque a visão de Hobsbawm sobre a evolução do mundo é pessimista, e porque se trata de despir estes chavões da sua carga idealizada e fantasista. Há um capítulo (o terceiro) que discute as diferenças entre o imperialismo como classicamente concebido, no seu apogeu no século XIX, e a actual hegemonia norte-americana – é a parte mais interessante do livro, em que emerge o historiador do século XIX. Outros aspectos, porém, são apenas comentários algo banais à situação do mundo: não precisamos de um historiador para nos dizer que o sonho da exportação militar da democracia é perigoso, ou que a ameaça que o terrorismo islâmico coloca às sociedades ocidentais é relativamente pequena, comparada com os riscos do alarmismo. Concorde-se ou não com estas ideias, elas estão presentes no debate político, e Hobsbawm não acrescenta grande coisa ao que a esquerda geralmente diz sobre o assunto.

Além das saudades do século XX, há uma curiosa nota de conservadorismo moral. Hobsbawm sustenta que assistimos hoje a uma «reversão» do «processo de civilização» que Norbert Elias, num famoso livro de 1939, identificou como vindo desde a Idade Média: uma vasta transformação gradual dos padrões sociais relativos à sexualidade, à alimentação, à violência, à higiene íntima. (Até a forma abstracta como nos referimos a estas coisas demonstra a força da «civilização».) Tratou-se de impor «maneiras», etiqueta, regras de vergonha e de repugnância. Ora, para Hobsbawm, é tudo isto que está em causa com a actual «escalada da violência pública», que concebe em termos muito alargados, associando numa mesma análise fenómenos de violência social e de violência política, incluindo terrorismo, reabilitação da tortura, delinquência juvenil, quebra de regras tradicionais de respeito no interior da família e disseminação da linguagem obscena a todas as classes sociais, e mesmo às mulheres.

Nalguns aspectos deste diagnóstico de «reversão» do processo civilizacional, há um eco do «tudo o que é sagrado é profanado», que Karl Marx celebremente escreveu no Manifesto Comunista, referindo-se à forma como o capitalismo desintegra as velhas convenções sociais. Hobsbawm também faz uma articulação entre a evolução actual da globalização e o declínio do respeito; mas o que em Marx tinha uma tonalidade apesar de tudo positiva – o capitalismo era revolucionário, uma etapa na transição do obscurantismo para o progresso –, aqui não tem mais. Tendo-se perdido o destino último (o comunismo), estes fenómenos são vistos de maneira inteiramente negativa.

No conjunto, estes são ensaios políticos, mais opinativos do que históricos. São testemunho de uma cabeça que aos 90 anos mantém uma atenção assombrosa – e sem nenhum sectarismo ideológico – à bibliografia que vai saindo. A tradução é relativamente fluente, mas acontece tropeçar-se numa palavra absurda ou numa passagem ininteligível. Há erros graves, como chamar à doutrina militar americana «choque e terror», quando é evidente que na retórica antiterrorista «terror» seria sempre palavra banida (é «choque e pavor»). Há também erros divertidos: na p.36, Hobsbawm angustia-se por duas vezes com o destino da «corrida humana» e o perigo da sua extinção. Trata-se, como é evidente, de «human race», essa mesma espécie a que pertenço eu, você leitor e o tradutor do livro, mesmo que momentaneamente ele pareça ter sido tomado pelo espírito de um processador de texto.