sexta-feira, maio 18, 2007

Dores de simpatia



Tenerife: Playa de las Américas, 1993

Através do livro que reúne as crónicas de João Pereira Coutinho na Folha de São Paulo (que foi distribuído com a revista Sábado na semana passada), chego a um conjunto de fotografias do inglês Martin Parr, organizadas sob o título genérico Bored Couples. O aborrecimento, o tédio, dizem-me, é o grande assassino do amor. Digo «dizem-me» porque falam assim todas as pessoas que sabem do assunto, e eu, embora tenha participado já de mais de uma mão-cheia de parelhas, sempre vi doenças mais fulminantes do que o tédio destruirem tudo. Sob essa vasta palavra do tédio, nestas fotos, a primeira coisa que me salta à vista é a violência contida. Aliás, esta violência é contida porque não se dirige principalmente ao outro. Vejamos o casal velho de Tenerife: sabemos que eles estão aborrecidos sem sequer lhes vermos as caras. Talvez por isso esta seja talvez a minha foto preferida. O que é aborrecido na foto? As roupas, o cenário? Sem dúvida que as roupas pobres e a paisagem árida não ajudam; mas o que está aborrecido aqui é mesmo o casal. Sobretudo ele. Naquele pescoço meio voltado para o outro lado – de todos os lados possíveis, de todos os lados igualmente desinteressantes – o homem voltou-se para o outro lado; aliás, chegou-se três passos à frente da mulher, nas suas pernas finas, com fracas forças, ridículas, e inclinou o pescoço para a direita. Conquistou talvez um horizonte de liberdade, um espaço para onde pudesse olhar e pensar sobre o que lhe estava acontecendo, como se ninguém mais estivesse ali: pensar sobre a raiva, sobre as suas origens, possíveis saídas. Aborrecido? O homem está zangado, encurralado, talvez zangado também por estar zangado. Está de férias em Tenerife, veste as roupas que é suposto vestir, aquelas que ele escolheu (ou escolheram para ele) com o seu dinheiro, com a mulher que ele escolheu, e é aquilo. A mulher feita barata tonta olha na direcção dele: a tentar segurar as pontas, apanhar os cacos. Muitas das vezes uma parte está só a tentar apanhar os cacos. Ela não tem culpa.


Windsor Safari Park, 1990


Maiorca, 1993


Maiorca, 1993

O aborrecimento? Não é o aborrecimento. O homem no fast-food olha para a esquerda. Sente-se «cabreado», fodido-e-mal-pago, atraiçoado, encornado. O homem no bar, perante um monte de cervejas vazias, olha para o lado mais distante possível. Tudo nele transmite agressividade. O homem no restaurante de praia está positivamente violento; mas a luta não deve ser com a mulher, ele está de olhos fechados, talvez nem se tenha dado bem conta, se lhe tirassem outra foto, com pose, talvez estivesse a sorrir. Ela não está em posição de combate e simplesmente procura pontos de apoio algures na perspectiva. O casalinho da Finlândia que foi sair pela primeira vez num sábado à tarde está encornado: também perdido, sem referências, sem conhecer as regras, sem poder adequar-se ao jogo que lhes foi proposto como sendo desejável. Fodido.


Kotka, Finlândia, 1991

Mas é este o meu ponto: estes casais, aborrecidos, tediosos na aparência, ridículos, estão todos constrangidos numa situação que não aceitam. Não estão só aborrecidos: estão chateados, no duplo sentido que a expressão tem em português. O que os define é o seu carácter ausente: mas, se não estão aqui, estão noutro lado. Nenhuma destas pessoas aceita o destino em que vive, mesmo que não tenha encontrado a chave para sair disso. Não direi que são heróis; não direi sequer, com optimismo, que encontrarão a chave, que haverá outro lado. Não direi que são boas pessoas, respeitadoras, conformes com a dignidade dos outros e dos votos que fizeram. Direi apenas que não são conformados, nem aborrecidos, mas rebeldes, gente à procura de outra coisa, alguns deles positivamente desesperados nisso, muitos talvez sem pensarem nas coisas assim. O que me inspiram não é comiseração, mas simpatia, como afeição e como semelhança.


Maiorca, 1993


No barco chamado «do amor» (eu já estive aqui) que faz a viagem de noite entre Estocolmo e Helsínquia, 1991

Ah, e as crónicas do Coutinho? Vocês sabem: exibicionismo de nomes e na pontuação, nas fórmulas gastas e na insistência piadética. Mas - não há por que hesitar - escrita fluente e, uma vez por outra, com um achado:

«Esclarecimento: a Nova York que vocês imaginam que existe, na verdade, não existe. Só nos filmes de Woody, que praticamente sublimou a cidade --uma cidade invulgarmente desumana e agressiva-- a golpes de ternura.»

Em uma ou outra em até encontrei uma sensibilidade próxima da minha:

Aqui.

Embora não, por exemplo, no texto sobre as fotos de Parr. Alguém disse uma vez que o João Pereira Coutinho era «um rapazinho», e eu não quis aceitar, pensando que ele fosse muito pior do que isso. Mas era verdade: não se justifica tanta hostilidade, porque aquilo que João Pereira Coutinho é, é um rapazinho. Nalguns momentos, até, um bom rapazinho.