segunda-feira, julho 30, 2007

Ingmar Bergman, 1918-2007


Verão com Mónica, 1952

Bergman morreu esta madrugada. Não pretendo aborrecer-vos com as minhas opiniões sobre o assunto, tanto mais que qualquer pessoa com um vago interesse por cinema conhece pelo menos um filme do realizador, e sentir-se-á autorizado ou talvez mesmo compelido a falar. O meu conhecimento é errático e superficial. Mas, mesmo a um olhar errático e superficial, uma coisa salta à vista. Os filmes de Bergman são diferentes dos de todos os outros génios, dos Chaplin, dos Hitchcock, dos Billy Wilder, dos Ford, mesmo dos alemães como Murnau ou dos nórdicos como Dreyer. Estão, por assim dizer, numa categoria à parte. Outro dia, na bilheteira da Cinemateca, uma senhora perguntava «quantos Bergmans ainda vão passar?» (no contexto do pequeno ciclo sobre Harriet Anderson) (por acaso, já tinham passado todos), e havia no tom (leigo) da pergunta um sinal deste reconhecimento. Bergman, de quem se falava em Lisboa na semana antes de ele morrer, estava também certamente (e ao acaso) noutras conversas de outras pessoas noutras partes do mundo, nesta semana como noutras, quaisquer semanas, como se ele estivesse (está) sempre presente por toda a parte.
Suponho que este carácter distintivo tem a ver com a forma como explora os indivíduos, como os filma, como «mostra» as suas implicações psicológicas sem as explicar. Talvez seja esta maneira de mostrar dimensões psicológicas - ao mesmo tempo tão próximas e tão insondáveis (que não são explicáveis por uma racionalidade abstracta, e ao mesmo tempo parece que as percebemos muito bem) -, talvez seja por isso que quis ver um tom especial na pergunta da senhora. «Quantos Bergmans ainda vão passar neste ciclo?» O olhar de Bergman tê-la-á implicado a ela especialmente, como me implicou a mim, e a gerações de permeio e daqui para a frente.
Vi alguns filmes, no final da adolescência, aí pelos dezoito anos: já não recordo bem quais, tenho disso uma lembrança difusa. Só dois filmes têm imagens muito claras na minha cabeça: Verão com Mónica (gosto mais deste título, o original, do que do explicativo Mónica e o Desejo das traduções) e Fanny e Alexander. Todos estivemos apaixonados pela Mónica, como dizia há dias o Bénard da Costa (certamente sem nenhuma originalidade), e estivemos apaixonados por ela de uma maneira diferente das outras paixões por actrizes/ personagens de cinema. Mas o mais forte, para mim o mais completo, é Fanny e Alexander, a história de família, o último antes de Bergman ter voltado a pegar na câmara, vinte anos depois, para fazer Saraband.

(E peço muita desculpa, que isto está cheio de opiniões.)

terça-feira, julho 24, 2007

Sábado, 19h30

windermere.jpg

Para quem esteja em Lisboa (e porquê sair, se este ano não há Verão) não é de perder, no Sábado, na Cinemateca (19h30, sala pequena), O Leque de Lady Windermere, adaptação de Oscar Wilde por Lubitsch. Quem não vir talvez não acredite que é possível adaptar em mudo o mestre do epigrama e não perder nada - da inteligência, do cepticismo, da empatia. (Costuma dizer-se do cinismo, mas não é justo. É uma história com uma heroína.)

sexta-feira, julho 20, 2007

Elogio de Manuel Monteiro

Está por prestar, parece-me, a justa homenagem a Manuel Monteiro, cidadão exemplar e até ímpar. Não me recordo de outro político de primeira linha (seis anos, salvo erro, seguidos à frente de um dos partidos históricos) que, caído na irrelevância, tenha prosseguido a sua actividade política como se nada fosse: campanha após campanha, semana após semana, petição após petição. Monteiro prossegue, com o mesmo tom e o mesmo sorriso, ainda que não tenha partido, nem apoiantes, nem dinheiro, nem propriamente uma causa ou ideias persistentes. Não se imagina o que ganhe; e no entanto persiste. Numa era de abstenção galopante e demissionismo cívico, é um modelo esquecido, o último ateniense entre os vivos.

Para dizer que

Hoje escreve no Público, na secção de livros, Luís Miguel Queirós, sobre os poemas ingleses de Fernando Pessoa. Como sempre, por si só justifica o €1,25 do preço de capa.

sexta-feira, julho 06, 2007

Cinema & pipocas


Começou esta semana na Cinemateca, e vai prolongar-se por todo o mês de Julho, um ciclo dedicado ao cinema de Bollywood («um país, um género: a Índia e o musical», às 15h30). Abriu com Aan - prestígio real, de 1951, filme que era acompanhado de uma folha enfática, entusiástica e, no geral, interessante de Antonio Rodrigues. Aan foi, ao que parece, um estrondoso sucesso comercial em Portugal à data de estreia: quatro meses seguidos em cartaz. O que a folha da Cinemateca não explica é por que razão este filme em particular obteve em Portugal tanto sucesso. Como se via Aan aqui nos anos cinquenta? Que ingredientes tinha o filme que encontraram eco no público português, de uma forma praticamente única em toda a história do cinema indiano?
De resto, o problema do contexto levanta outra pergunta. O cinema na Índia é uma actividade convivial, de grupo, com interrupções, entradas e saídas da sala, palmas, conversa, comida. Na Cinemateca sentamo-nos ordeiramente e sem intervalo. Vamos conseguir ver Bollywood assim?

Nem tudo é doce no maquiavelismo

[publicado no Monde Diplomatique – edição portuguesa, de Julho.]

Álvaro Cunhal e a dissidência da terceira via

Raimundo Narciso

Ed. Âmbar, Porto, 2007, 197 pp.

Quase duas décadas passadas, Raimundo Narciso conta a história do grupo que dissidiu do PCP em 1988-1991: é essa a «terceira via» a que o título se refere – confusamente, uma vez que, a partir de meados da década de noventa, Tony Blair popularizou a mesma designação num sentido totalmente distinto. O livro acrescenta alguma coisa do ponto de vista do detalhe histórico: a passagem mais viva é aquela em que Raimundo Narciso se descobre perseguido por espiões do próprio partido, numa noite de 1988, enquanto se dirigia a uma reunião «fraccionista». No que o livro é manifestamente insatisfatório é no plano da reflexão política. Por um lado (tal como o próprio grupo), apresenta a dissidência como tendo motivações «procedimentais» (falta de democracia interna, etc); mas, enquanto esteve de acordo com a linha política, Narciso (como ele próprio, honestamente, anota) nunca se incomodou com os procedimentos. Já quanto às razões políticas de fundo, elas são apresentadas sob a forma de uma desadequação da linha do partido à «realidade», evidência demonstrada na incompatibilidade com a «perestroika» (que dominava a URSS neste período, e até à sua extinção) e pela incapacidade do PCP, em Portugal, para influenciar directamente a esfera do poder político.
Sobre a cabeça dos militantes então «críticos» (depois dissidentes) pairava a acusação de aproximação ao PS – acusação que, no universo do PCP, se reveste de conotações que chegam a ser mais morais que políticas. O fantasma ainda paira sobre o livro, até porque Raimundo Narciso e outros (Pina Moura, Mário Lino, José Luís Judas, o falecido Barros Moura) efectivamente aderiram ao PS ao longo dos anos seguintes. Mas a resposta de Narciso é hoje a que era naquele tempo: que se trata de um processo de intenções, que o projecto não existia, etc. Em certa medida, tudo continua a colocar-se em termos de intenção, de dolo, de culpa. O que escapa ao seu discurso (como já então escapava) é saber que projecto político tinham os «críticos» que não fosse – rigorosamente – o mesmo que o PS já prosseguia. Que linha política propunham para o PCP que não fosse a adesão ao PS? Sobre esta questão o texto é omisso; e, se ela se punha na época, a passagem do tempo não fez senão reforçá-la. O que queriam os «críticos»? O que queria, ao menos, Raimundo Narciso?

Salva-se do livro a honestidade (às vezes, impressionante) do testemunho, o depoimento sobre a experiência da ruptura após uma vida de sacrifício pessoal (sacrifício que, com assinalável modéstia, Narciso nunca enfatiza), a documentação de alguns episódios e o sentido de humor.

«A análise da situação política trouxe as novidades do costume. A situação da economia piorou, a vida dos trabalhadores agravou-se, o isolamento do Governo cresceu e as análises políticas de Cunhal, ou do partido, confirmavam-se inteiramente como se ‘previra e prevenira’. Salvo nuances e as circunstâncias de cada momento a análise era esta desde que o PCP deixou de participar no Governo em 1976 e estava ‘correctíssima’. A situação económica do país, de acordo com as análises de Cunhal e Carlos Costa, baseadas no trabalho da Comissão de Actividades Económicas que Carlos Carvalhas condimentava ao gosto do sexto andar [direcção] antes de lhas transmitir, piorava sempre, sempre, dia após dia, mês após mês, ano após ano, sem intervalo, nem fôlego. Abismávamo-nos com os abismos em que já estaria o país, felizmente sem que os Portugueses tivessem dado por isso.» [p.81]

Não se salva a qualidade da edição – mal revista, mal pontuada, com fotografias de péssima impressão, e isto num livro que traz vinte euros como preço de capa. Lido com atenção, transpira nele uma certa ambivalência de Raimundo Narciso sobre os métodos de Cunhal e do PCP, entre a rejeição e a simpatia por uma certa eficácia, um certo maquiavelismo. Hélas, na ausência de uma linha política, a eficácia é sempre o único critério que resta.

quarta-feira, julho 04, 2007

Back in 2003

Aliás, foi ontem.

Brzezinski


Na Câmara Corporativa, o vídeo de uma apresentadora de televisão que se recusa – em directo – a abrir o noticiário com uma história sobre Paris Hilton. O programa é o informativo da manhã do canal MNSBC de 26 de Junho deste ano. Quando a produção volta a pôr-lhe nas mãos o mesmo texto, ela sai e vai destruí-lo numa daquelas máquinas de desfazer papel. Há uma curiosidade adicional: Mika Brzezinski, a jornalista, é filha do antigo Conselheiro Nacional de Segurança dos EUA (durante a presidência de Jimmy Carter) Zbigniew Brzezinski, que continua a ser um dos especialistas norte-americanos mais relevantes em política internacional do campo «Democrata».

A ponte

A ponte é uma passagem/ pra outra margem, cantavam os Jáfumega já há muitos anos. Na Golden Gate Bridge de São Francisco (de que a velha Ponte sobre o Tejo é uma cópia), os versos ganham um sabor mais metafísico, sabendo que se trata de um dos lugares mais utilizados no mundo para tentar o suicídio. Confiando nas estatísticas, uma equipa de cinema norte-americana colocou uma câmara apontada à ponte durante um ano, e esperou que caíssem. Literalmente.
O resultado é A Ponte, um filme que está em exibição nas Amoreiras. Palavras definitivas sobre o assunto foram escritas por Luís Miguel Oliveira no Público. Cito de memória: filmar o suicídio como um dispositivo de suspense (salta, não salta) não lembrava ao diabo. E: com a propagação do you tube, A Ponte é um modelo que será repetido muitas vezes no futuro.
Em suma, trata-se com toda a certeza do filme mais asqueroso do ano. As imagens dos suicídios (reais) são intervaladas com entrevistas a familiares e amigos dos suicidas; mas entrevistas muito superficiais. Não há dados, não há informação, não há propriamente ideias nem novidades sobre o suicídio: o sumo é poder ver o acto em si. Salva-se o depoimento de um rapaz que, ao saltar da ponte, se deu conta de que não queria morrer, e conseguiu endireitar o corpo, de maneira que ficou apenas muito partido. Confrange encontrar críticos que viram inteligência ou profundidade ou substância no filme.

«"The Bridge" is too busy jumping from one mini-biography to the next and popping in artful shots of birds and clouds. The film offers no statistics, no questions and no new revelations». Aqui.
«The decision to keep the process of filming out of the film robs it of too much context.»
Aqui.

Cenas da luta de classes (2)

É pena que o texto de Timothy Garton Ash sobre São Paulo, no Guardian da semana passada, seja tão pobrezinho. Para dizer estas banalidades não era preciso sair de Oxford. Uma passagem, porém, é exata:

As descrições feitas por pessoas de esquerda sobre o que é a vida nos bairros pobres de São Paulo, no decorrer de um excelente almoço num dos extraordinários restaurantes da cidade, começam sempre por «A minha empregada». Como na frase: «Minha empregada se levanta todo o dia às quatro da manhã para estar no meu apartamento às oito.»

Assisti a conversas exactamente assim. Lembro-me em particular de um jantar em Ipanema. A empregada era necessária para tomar conta das crianças pequenas. Como morava longe, entrava às segundas às oito da manhã, e saía ao sábado ao fim do dia; folgava ao domingo. A própria empregada tinha filhos pequenos, que via uma vez por semana, e que eram criados por familiares e vizinhos.
E lembro-me desta conversa porque a senhora – uma senhora simpática, decente, civilizada – estava um pouco incomodada por ter acabado de despedir a dita empregada, depois de esta chegar atrasada ao trabalho duas segundas-feiras. Ia ser um transtorno, as crianças estavam muito acostumadas com a rapariga.