quinta-feira, janeiro 11, 2007

Early morning blog

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Detalhe de fresco de Pisanello, na Basílica de Santa Anastácia, em Verona

O enforcamento
(George Orwell, «The Hanging», originalmente publicado em Agosto de 1931, disponível na íntegra por exemplo ali.)
[Tradução: Ivan Nunes/ Paulo Varela Gomes.]

Isto passou-se na Birmânia, numa manhã pesada da estação das chuvas. Uma luz doentia, de estanho amarelo, incidia obliquamente por sobre os muros altos do pátio da prisão. Esperávamos à porta das celas dos condenados, uma fila de barracos com grades duplas como se fossem pequenas jaulas de animais. Cada cela media cerca de três metros por três e não tinha praticamente nada, apenas uma tábua de dormir e um cântaro de água potável. Em algumas celas havia homens de pele escura agachados em silêncio junto às grades, com os lençóis enrolados à volta do corpo. Eram os condenados, prontos a serem enforcados na semana seguinte ou na outra.
Um prisioneiro tinha sido retirado da sua cela. Era um hindu, fraca amostra de gente, cabeça rapada, olhos vagos e líquidos. Tinha um bigode espesso, farfalhudo, absurdamente grande para o tamanho do seu corpo, como os bigodes dos actores cómicos no cinema. Guardavam-no seis grandes carcereiros indianos, que o preparavam para a forca. Dois deles permaneciam ao lado, com espingardas de baionetas caladas, enquanto os outros o algemavam, passavam uma corrente pelas algemas, prendiam-na aos seus cintos, e amarravam-lhe bem os braços de ambos os lados. Andavam mesmo em cima dele, com as mãos sempre a agarrá-lo, num aperto meticuloso, acariciador, como se o estivessem a apalpar para terem a certeza de que estava lá. Era como se estivessem a segurar um peixe ainda vivo que pode saltar de novo para a água. Mas o homem permanecia perfeitamente submisso, entregando os seus braços flacidamente às cordas, como se mal notasse o que estava a acontecer. (…)
Dali até ao cadafalso eram cerca de 35 metros. Eu observava as costas morenas e nuas do prisioneiro caminhando à minha frente. Andava desajeitadamente com os braços atados, mas de forma bastante firme, com aquele andar bamboleante dos indianos que nunca endireitam os joelhos. A cada passo, os seus músculos deslizavam perfeitamente no lugar, a mecha de cabelo no seu crânio dançava para cima e para baixo, os pés deixavam marca na gravilha molhada. E uma vez, apesar dos dois homens que o agarravam pelos ombros, desviou-se ligeiramente no caminho para evitar uma poça.
É curioso, mas até àquele momento eu não me tinha apercebido do que significa destruir um homem saudável e consciente. Quando vi o prisioneiro desviar-se para evitar a poça, percebi o mistério, a iniquidade inexprimível, que consiste em acabar com uma pessoa que está em plena vida. Este homem não estava a morrer, estava vivo exactamente como nós. Todos os orgãos do seu corpo funcionavam – os intestinos digeriam a comida, a pele renovava-se, as unhas cresciam, havia tecidos a formarem-se – tudo cumpria a sua função de uma maneira solenemente absurda. As unhas continuariam a crescer enquanto ele estivesse já no cadafalso, e ainda quando caísse no vazio com uma décima de segundo para viver. Os seus olhos viam a gravilha amarela e os muros cinzentos, o seu cérebro lembrava-se, previa, pensava – pensava até sobre poças. Nós e ele formávamos um grupo de homens caminhando em conjunto, vendo, ouvindo, sentindo, percebendo o mesmo mundo; daí a dois minutos, depois de um súbito estalido, um de entre nós ter-se-ia ido – menos uma cabeça, menos um universo.
O cadafalso ficava num pequeno pátio, separado dos terrenos principais da prisão, coberto por uma vegetação alta e agressiva. Era uma construção de três paredes de tijolo cobertas por umas tábuas. Por cima, duas vigas e uma trave com a corda a baloiçar. O carrasco, um condenado de barba grisalha vestido com o uniforme branco da prisão, esperava junto da sua máquina. Cumprimentou-nos com uma vénia servil quando entrámos. A uma palavra de Francis, os dois carcereiros, agarrando o prisioneiro de forma mais firme que nunca, encaminharam-no, ou empurraram-no*, para o cadafalso e ajudaram-no desajeitadamente a subir a escada. Nessa altura o carrasco também subiu e ajustou a corda ao pescoço do prisioneiro.
Permanecemos à espera, a quatro ou cinco metros de distância. Os carcereiros tinham formado uma espécie de círculo à volta do cadafalso. E então, quando o nó foi apertado, o prisioneiro começou a gritar pelo seu deus. Gritava alto, repetidamente, «Ram! Ram! Ram! Ram!», não de forma urgente ou assustada como uma reza ou um pedido de ajuda, mas de maneira regular, ritmada, quase como as badaladas de um sino. (…) O carrasco, que permanecia de pé no cadafalso, pegou num pequeno saco de algodão com a forma de um saco de farinha e enfiou-o pela cabeça do prisioneiro. Mas o som, abafado pelo tecido, mesmo assim persistia, uma e outra vez: «Ram! Ram! Ram! Ram! Ram!»
O carrasco desceu e postou-se ao lado da forca, com a mão na alavanca. Tudo parecia acontecer muito devagar. O grito abafado, persistente, do prisioneiro continuava – «Ram! Ram! Ram!» –, sem vacilar um instante. O supervisor, de cabeça pousada sobre o peito, batia lentamente com a sua vara no chão; talvez contasse os gritos, permitindo ao prisioneiro emitir um número determinado – cinquenta, talvez, ou cem. Toda a gente tinha mudado de cor. Os indianos estavam a ficar cinzentos, cor de café de má qualidade, e uma ou duas das baionetas tremiam. Observávamos o homem amarrado, encapuçado, no cadafalso, escutávamos os seus gritos – cada grito mais um segundo de vida; um único pensamento ocupava as cabeças de todos: matem-no depressa, acabem com isto, parem com este barulho abominável!
Subitamente o supervisor decidiu-se. Levantando a cabeça, fez um movimento rápido com o pau. «Chalo!», gritou, de forma quase feroz.
Ouviu-se um retinir de correntes, e a seguir um silêncio absoluto. O prisioneiro estava morto, e a corda retorcia-se sobre si mesma. (…) Aproximámo-nos do cadafalso para inspeccionar o corpo do prisioneiro. Estava pendurado com os dedos dos pés apontados para baixo, girando muito lentamente, morto como uma pedra.
O supervisor pegou na vara e empurrou o corpo nu, que oscilou ligeiramente. «Este já era», disse o supervisor. Saiu de debaixo da forca e expirou profundamente. Subitamente, a sua face já não ostentava um aspecto mal-humorado. Olhou para o relógio. «08h08. Bem, graças a Deus por hoje é tudo.»
Um enorme alívio abateu-se sobre nós, agora que o trabalho estava feito. Dava vontade de cantar, desatar a correr, dar risadinhas. De um momento para o outro começámos todos a conversar alegremente. (…)

*

Bom dia!©